Foram criados cidadãos de segunda classe sob o prisma do direito constitucional da presunção de inocência
ARTE KIKO
Foram criados cidadãos de segunda classe sob o prisma do direito constitucional da presunção de inocência


Alguns julgamentos no Supremo Tribunal  chegam a causar certo constrangimento. Ao acompanhar a fundamentação dos votos, a impressão que se tem é a de que a Constituição não é sequer levada em consideração. Não estamos, muitas vezes, assistindo a uma discussão entre interpretações diferentes do texto constitucional. O que se vê são fundamentos que se sustentam na visão de mundo dos ministros. No julgamento em que ficou decidido que o acusado por crimes dolosos contra a vida, quando condenado pelo Tribunal do Júri, deve sair preso após a sentença, a Carta Magna não foi chamada para participar do debate.

Há alguns anos, tive a honra de apresentar ao STF  a ação direta de constitucionalidade nº 43. No julgamento, o plenário fixou a tese de que, pelo princípio constitucional da presunção de inocência, o cidadão tem o direito de só ser recolhido ao cárcere após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Salvo, é evidente, se no caso concreto houver motivos que sustentem, de maneira fundamentada, a necessidade excepcional de uma prisão cautelar. À época, 2 outras ADC’s foram ajuizadas, a 44 e a 54, e a mobilização fantástica de várias entidades de classe, juristas, professores e defensores públicos conseguiu pautar o tema nacionalmente. Paralelamente, foram escritos livros e centenas de artigos, bem como foram realizados vários seminários enfrentando a relevância do assunto.

Esse julgamento foi o responsável pela liberdade do presidente Lula,  que se encontrava preso há 580 dias sem culpa formada. É importante ressaltar que, ao final de alguns anos, ele foi inocentado ou seus processos foram anulados. Não fosse o julgamento do Supremo Tribunal, reafirmando a presunção de inocência, Lula teria ficado encarcerado por mais alguns anos até ter êxito nos seus processos. E não seria Presidente da República. Ou seja, o que possibilitou a liberdade do hoje Presidente foi o cumprimento de um preceito constitucional. Aquelas ADC’s sequer tinham o hoje Presidente como parte, a decisão atingiu, indistintamente, a todos os cidadãos.

Atingia, na verdade. Hoje, a Constituição deixou de valer para os condenados pelo Tribunal do Júri. Em regra, os chamados crimes de sangue são cometidos, em sua maioria, por pessoas negras, pobres e, muitas vezes, sem acesso a advogado. Esses serão presos compulsoriamente após o julgamento, sem ter possibilidade de recorrer em liberdade e comprovar, posteriormente, a inocência. É bom frisar que quem for condenado por roubo a mão armada, por corrupção, por estupro, por peculato ou por organização criminosa terá direito ao cumprimento do princípio constitucional da presunção de inocência.


E os argumentos usados para afastar o preceito constitucional passaram ao largo do enfrentamento da Carta Magna. Os fundamentos foram sobre a quantidade de homicídios no Brasil, ou sobre a perplexidade que causava o condenado sair pela porta da frente após a sessão do Júri. Impressionou, até mesmo, o fato de um réu absolvido ter comemorado a absolvição! E teve ainda um discurso correto e eloquente sobre a praga do feminicídio no país. Todavia, nada disso tinha relação com a matéria de fundo que deveria estar sendo julgada.

O que mais preocupa é notar que o meio jurídico está quase imobilizado ao se deparar com esse julgamento que escancarou uma contraposição com a própria jurisprudência do Supremo Tribunal. Foram criados cidadãos de segunda classe sob o prisma do direito constitucional da presunção de inocência. Percebo que a preocupação em não enfrentar o tema talvez tenha um motivo: resolver que, havendo contradição entre a aplicação do conceito da presunção de inocência para os réus condenados pelo Tribunal do Júri, a solução seria extender a prisão para todos os condenados por qualquer crime. Até chegarmos à prisão obrigatória em qualquer fase do processo.

Sobre essa matéria, o grande professor Geraldo Prado, em artigo publicado no Conjur em 14 de setembro, finalizou assim: “Palas Atenas a essa altura está rubra de vergonha. Não fique, Deusa. O direito já saiu de férias em outras ocasiões e voltou. Ele haverá de retornar mais uma vez”.

Fica a dúvida: será? Lembrando-nos de Francesco Carnelutti:

“O problema do direito e o problema do juiz é uma coisa só. Como pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é? A única via que lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria: precisa sentirem-se pequenos para serem grandes.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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