Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Deixem Deus de fora

“Ando muito completo de vazios. Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades.” Manoel de Barros

Feto de plástico foi utilizado em sessão sobre aborto no Senado Federal
Foto: Geraldo Magela/Senado Federal
Feto de plástico foi utilizado em sessão sobre aborto no Senado Federal


Quem começa uma conversa sobre aborto perguntando: “você é favorável ou contrário ao aborto?”  está com má-fé e se nega a ter uma reflexão séria sobre uma questão tão delicada. Obviamente, ninguém é favorável. Não se imagina uma mulher dizendo com naturalidade: “vou ali fazer um aborto e volto para almoçar”. A questão é defender o direito ao  aborto com toda a segurança proporcionada, obrigatoriamente, pelo Estado. No Brasil, só existem 3 hipóteses previstas na lei: estupro, risco à vida da mulher e feto anencéfalo.

A realidade crua e dura é constatar milhares de mulheres fazendo aborto em condições precárias, sem a assistência do Estado e com altíssimo número de mortes e mutilações. Salvo as que possuem poder econômico e se submetem ao procedimento em clínicas e hospitais particulares.

O tema mobiliza a classe política, que se acostumou a ser falsa em vários assuntos que são fundamentais para a sociedade. Na reta final do segundo turno entre Dilma e Serra, duas pessoas extremamente qualificadas, sérias, com formação humanista e compromissados com a agenda humanitária, não por acaso ambos de esquerda, por uma opção política de não contrariar os religiosos e os conservadores, nenhum deles colocou esse assunto tão delicado na pauta da campanha. Lembro-me que, decepcionado, escrevi na Folha de São Paulo, em 15 de outubro de 2010, o artigo “Eu fiz 3 abortos”. À época, ocorriam 1,1 milhão de abortos clandestinos anualmente e, a cada 2 dias, uma mulher morria. Naquele ano, passaram pela rede pública 184 mil mulheres para fazerem curetagem. E o dado era que 1, em cada 5 mulheres até 40 anos, já tinham interrompido a gravidez. Há mais de 14 anos, mais de 5 milhões de mulheres tinham passado por esse trauma.

Não escrevi com nenhuma alegria ou prazer, mas me senti na obrigação de me posicionar. Entendo que essa é a questão que passa sobre o direito de a mulher decidir sobre o corpo dela, mas é também um assunto em que o homem tem que se manifestar. Dentre outros pontos, é preciso ressaltar que o aborto é uma questão de saúde pública.

Boa parte desses que se posiciona, até de maneira agressiva, a favor de projetos repressivos na discussão sobre aborto, são hipócritas quando uma gravidez indesejada acontece. Vários recorrem a hospitais e médicos particulares para fazer o que querem criminalizar em nome de uma fé que nada tem de semelhança com Deus.

Impressionantes os números quando se fala sobre o aborto legal em caso de estupro. De cada 10 abortos, 6 são de crianças até 13 anos. Majoritariamente, negras e pobres. Meninas. Crianças. Na sua maioria, abusadas e estupradas por alguém da família. Alguém próximo. Em boa parte dos casos, a criança nem se dá conta da gestação. Só descobre depois das 22 semanas previstas no projeto do estupro. E querem criminalizar a opção de não ter um filho fruto de um estupro com pena maior do que a do estuprador. Um acinte. Um escândalo.

No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, foram feitos 2.687 abortos legais no ano passado. Desses, 600 foram realizados após a 22ª semana de gestação. As dificuldades das crianças são dantescas. Além do trauma de serem violentadas por pessoas que deveriam cuidar delas, 70% dos estupros ocorrem dentro de casa. Muitas vezes a criança sequer percebe que está grávida. Não conhece direito seu corpo, tem medo, tem vergonha e não tem com quem se consultar ou dialogar. Mesmo depois que se descobre a gravidez indesejada, fruto de um estupro criminoso e covarde, são inúmeras as dificuldades de providenciar a interrupção da gestação, que é um direto das mulheres nesse caso. Somente 2% dos municípios brasileiros oferecem uma unidade de saúde com condições técnicas de realizar o aborto legal.

A cena dantesca promovida por um senador da República, no Plenário do Senado Federal, ao levar uma mulher para interpretar um feto, envergou a todos e causou revolta. A tentativa de apoiar o  Projeto 1904/24 proporcionou uma cena teratológica e repulsiva. Infelizmente, perderam o senso do decoro e do ridículo. Com essa omissão por parte do Estado e com a política de criminalizar a mulher e a criança que é estuprada, é importante que compreendamos que esses irresponsáveis são cúmplices dos horrores que defendem em nome de Deus.

Lembrando-nos de Hilda Hilst, no Poema aos homens do nosso tempo:

“Sobre o vosso jazigo
-Homem político-
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens.

Sobre os vossos filhos
-Homem político-
A desventura
Do vosso nome.

E enquanto estiverdes
À frente da Pátria
Sobre nós, a mordaça.
E sobre nossas vidas
- Homem político-
Inexoravelmente, nossa morte.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay