Gosto de contar que um dos dias mais felizes da minha vida foi quando recebi o título de Cidadão Honorário do Rio de Janeiro. Da Tribuna da Câmara Municipal, disse que, como mineiro, crescido entre as montanhas, eu me sentia um rio que desaguava no mar. Que o mar me acolhia e me protegia.
Sempre aprendi, na roça onde cresci, a respeitar a natureza. A zelar pelos córregos que brincavam de deslizar mansamente na fazenda dos meus pais. Com o passar dos anos, a preocupação com o descaso, muitas vezes criminoso, foi crescendo até virar um tema mundial. O homem é o seu próprio predador. E a sua ânsia de enriquecer a qualquer custo não enfrenta limites. A natureza insiste em mandar recados que só são vistos nas tragédias.
O que está acontecendo no Rio Grande do Sul é uma desgraça anunciada. Claro que as proporções assustam e entristecem a todos. Mas desastres como esses tendem a acontecer com mais frequência. O homem brincou de Deus e desprezou regras básicas. Obviamente, não é apenas a irresponsabilidade no trato do particular com a natureza que tem culpa. É necessário repensar as políticas públicas e a maneira com que o Estado enfrenta todo o ciclo que pode levar às enchentes, como as que assolam os gaúchos agora. Evidente que, depois que a natureza detona o pavio que inicia a catástrofe, é muito difícil conter a força devastadora das águas.
Embora não seja o momento de apontar culpados, e sim de nos solidarizarmos com o sofrido povo do Sul, é necessário que façamos uma reflexão sobre os motivos dessa calamidade. Primeiro, sobre a sordidez humana. No meio do mais absoluto caos, um bando de idiotas e de maus-caracteres se dedica a, através de notícias falsas espalhadas criminosamente, dificultar o trabalho de salvamento e de solidariedade. Indigentes morais e intelectuais que querem politizar a desgraça humana para tirar proveito monetário e político. O uso de fake news neste momento é crime e tem que ser enfrentado.
No meio da miséria humana, com mais de 100 mortos e milhares de desabrigados, postagens inverídicas que dificultam os salvamentos por meio de botes levam a um desânimo com a raça humana. O que nos mantém são os milhares de voluntários que estão nas ruas escuras, alagadas, sem nenhuma estrutura, sem banheiros, sem água potável ou energia, dedicando-se, com risco de vida, a salvarem os que precisam de ajuda. É hora de deixar de lado qualquer disputa política ou partidária.
Depois que a vida der certa normalizada nos lugares onde o caos se instalou, é urgente que a sociedade discuta os enormes erros que nos jogaram no abismo. Não foi só a força indomável da incerteza da natureza. Há um acúmulo de erros que devem ser discutidos e enfrentados. Mas até para que a discussão tenha um curso civilizatório é bom que ela se dê quando as águas baixarem e parte das feridas estiverem sendo cicatrizadas.
Não é saudável que esqueçamos os motivos, até como prevenção de desastres futuros. Porém, quem está na rua e perdeu entes queridos, casa e bens e não tem onde se proteger dignamente merece que o momento seja só de acolhimento. É o que nos resta fazer.
Remeto-me ao gaúcho Mário Quintana, no poema Emergência:
“Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas, profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay