Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Cheiro de cadeia

“O vento experimenta o que irá fazer com sua liberdade…” Haikai de João Guimarães Rosa

Foto: Carlos Humberto/SCO/STF
O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay

Quando o telefone tocou em 9 de janeiro, logo depois da tentativa de golpe de Estado, comecei a notar que os golpistas não estavam entendendo a dimensão dos fatos ocorridos no dia da infâmia. Um parente distante reclamando da prisão de uma irmã: “ela é idosa”, vociferou. Perguntei logo: “foi presa em um asilo?” . A resposta meio ingênua: “Não, no plenário do Supremo”.

Nos dias que se seguiram, as queixas eram de que a comida da penitenciária parecia uma lavagem, de que as filas para o banheiro seriam enormes, de que as celas estavam superlotadas e de que não tinham visitas quando queriam. Ou seja, com pouco tempo de prisão e a ultradireita já adotava parte das nossas pautas civilizatórias para o sistema carcerário. O próximo passo seria, e foi, reconhecer que bandido bom não é bandido morto. Os mais de 800 mil presos, a maioria negros, pobres e invisíveis sociais que apodrecem no nosso medieval sistema prisional, nunca sensibilizaram essa direita radical e atrasada. Mas, agora, começam a sentir o cheiro inconfundível da cadeia.

Um mês depois, a pergunta já era se eu considerava a hipótese de condenação. Respondi com tranquilidade: “os executores deverão ser condenados a 18 anos, os financiadores a 22, os políticos e militares a 28 e o chefe perto de 30”. Perplexidade geral. E é até engraçada a justificativa dos bolsonaristas. No início, defendiam que tudo não passara de uma visita às sedes dos Três Poderes. Depois, com a continuidade das prisões, o argumento era que, no máximo, houve uma tentativa frustrada de golpe, ou seja, não houve o golpe de Estado. Ora, mais de uma vez, expliquei que o tipo penal seria mesmo a tentativa, pois, se o golpe ocorresse e fosse vitorioso, os golpistas assumiriam o poder e prenderiam os democratas. Quem ganha escreve a história e, evidentemente, não são julgados por um Judiciário que estaria cooptado e manietado. 

O Supremo Tribunal cumpre seu papel constitucional de defensor da Constituição e do Estado democrático de direito, que esteve em sério risco. É necessário que a sociedade acompanhe não só o julgamento, mas as investigações que seguem com critério e determinação. É óbvio que os executores que estão sendo julgados estavam em nome de uma causa que foi longamente preparada. A disseminação virulenta do ódio e da violência pelo ex-Presidente Bolsonaro, desde o primeiro dia do seu governo, e até antes, era exatamente para propiciar o clima para a derrocada da Democracia. Tudo planejado com estratégia e muito dinheiro. Com apoio político e com parte dos militares.

O começo do julgamento indica que o país está nos trilhos democráticos e que as instituições seguem fortalecidas. E, claro, é necessário aproveitar esse arroubo humanista dos fascistas e repensar o sistema carcerário. Repito o que sempre defendi: quem é condenado ao cárcere perde a liberdade, mas tem o direito de manter a dignidade em toda a sua possível extensão. A esquerda, historicamente punitivista, não aprendeu isso com a prisão recente de vários dos seus líderes. A direita sempre foi mais pragmática; pode ser que, agora, o sistema prisional entre na lista de prioridades. 

Os financiadores da tentativa de implementar a Ditadura deveriam aproveitar o que resta de liberdade para convencer os políticos golpistas e até os militares que ainda estão com algum poder. Banquem uma reforma do medieval sistema carcerário. Ainda que estejam fazendo em causa própria, a civilização agradece. Fiquem contra a barbárie uma vez na vida. Será o maior avanço civilizatório que esses fascistas poderão fazer.

Socorro-me do mestre Umberto Eco:

“Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay