Refugiados: memórias do berço
“Me enterrem com meu coração na beira do rio onde o joelho ferido tocou a pedra da paixão.” Paulo Leminski, poema Para a liberdade e luta
Numa guerra, a morte encontra várias faces, disfarces e vestimentas. Diariamente, encontramos a morte real, o corpo estendido no chão. Ao mesmo tempo, milhões de vidas são obstadas e andam como zumbis sem entender o que as levou a tanta desgraça.
Em poucos dias de conflito, já ultrapassamos o número de 2 milhões de refugiados e há uma expectativa de mais de 4 milhões de pessoas emigrando da Ucrânia. Suprema covardia e crueldade. Estima-se que, ao menos, 1 milhão de crianças estejam à deriva procurando por um abrigo. Não podemos nos esquecer de que, neste momento, o combate acontece em um país de clima gelado, com temperaturas de - 5ºC, muita fome, sede, medo, desilusão e solidão.
O bandido do Deputado comparsa do Moro, que, com um áudio repugnante, expôs a visão sexista doentia, representa a face de uma realidade cruel da guerra. Há sérias denúncias sobre dezenas de menores sendo roubados para servirem de escravos sexuais. Os estupros reproduzem-se aos borbotões. São mortes atrozes e que levam ao aniquilamento do que ainda resta de humano nas pessoas. Uma criança separada dos pais e da família, em busca de um abrigo, deveria ser motivo para suspender o confronto. Mesmo a barbárie deveria encontrar limites.
Todos nós sabemos dos interesses financeiros e econômicos que sustentam as guerras. Não há restrições, não há solidariedade e não há nenhum humanismo.
E as batalhas sofisticam-se em crueldades. Em nome de uma falsa paz, os EUA impuseram um bloqueio violento e desumano à Cuba, para ficar só no exemplo clássico. Mataram um povo e estrangularam um país, só não conseguiram dominar o sentimento de nação. Mas submeteram gerações de cubanos a uma vida de privação. Agora, os embargos sufocam o povo russo. É a lógica da guerra.
Mesmo com boa parte da população da Rússia sendo contrária à invasão bárbara de um país independente, tendo se manifestado corajosamente contra Putin, acumulam-se os casos de isolamento interno e de gravíssimas restrições impostas ao país. Essas pessoas vão sentir, em parte, a dor que o autocrata do Presidente impõe aos ucranianos. Evidentemente, em uma proporção ínfima, pois a Ucrânia está sendo massacrada e o seu povo sendo morto de maneira desalmada. É uma terra arrasada.
Existem mortes anunciadas em várias áreas, inclusive nas artes. As cortinas fecharam-se para muitos artistas russos. Notícias de cancelamento em grandes eventos internacionais: Bienal de Veneza, Art Basel e Festival de Cinema de Cannes. O rompimento do Metropolitan Opera de Nova York, a mais conhecida casa de ópera dos EUA, com o Teatro Bolshoi de Moscou ainda não está muito claro. Da mesma maneira, a Royal Opera House do Reino Unido cancelou uma residência da companhia de Ballet Bolshoi de Moscou. E já há notícias de que a Academia Europeia de Cinema boicotou oficialmente os filmes da Rússia. Sem falar em demissões de artistas russos mundo afora, como a do regente da Filarmônica de Munique. São mortes que se somam.
Mas nada se equipara à multidão de cidadãos abandonando seu país. São milhões de ucranianos fugindo do horror de uma morte sem sentido, tendo como companhia o medo e a desesperança. Há cerca de 15 dias, tinham uma vida normal; agora, são refugiados sem nenhuma perspectiva. Nessas horas, dentro de cada um de nós, a morte mostra seu lado mais sórdido, e nós morremos também um pouco a cada dia.
Como nos ensina Machado de Assis, “A adoção de uma nacionalidade é ato político, e muita vez pode ser dever humano, que não faz perder o sentimento de origem, nem a memória do berço.”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay