“Leve sua alma para o céu, você não precisa levar seus órgãos”. A frase do médico brasileiro Rodrigo Vianna, chefe de transplantes do Miami Transplant Institute, nos EUA, resume a lição deixada pelo apresentador Gugu Liberato, que autorizou a doação de todos os seus órgãos após a morte. O gesto, segundo médicos, poderia beneficiar até 50 pessoas receptoras de órgãos, tecidos e ossos. Mas não só isso. A atitude de Gugu provocou um debate importante e ainda pouco abordado em nosso país: o estímulo à doação de órgãos após a morte.
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Apesar de contar com um dos melhores sistemas de transplantes do mundo, com cerca de 90% dos procedimentos realizados pelo Sistema único de Saúde, o Brasil ainda possui uma lista extensa de pacientes que aguardam por um órgão.
De acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), em seu último levantamento publicado no ano passado, cerca de 36.460 pacientes figuram a lista de espera. Isso porque, apesar da estrutura, o país ainda não conta com um número suficiente de doadores.
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Hoje no Brasil a doação só acontece após autorização familiar. Não é necessário deixar nenhum documento por escrito, bastando comunicar à família sobre o desejo de doar. Nossa legislação exige autorização de cônjuge ou parente maior de idade, até o segundo grau, para a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas, para transplantes ou outras finalidades terapêuticas.
Diferente da família do apresentador, muitos familiares ainda se negam a autorizar a doação. Dados do Ministério da Saúde apontam que o índice de recusa das famílias em autorizar os transplantes ainda é alto, chegando a 43%.
Outra questão urgente é o elevado gasto do SUS para custear transplantes complexos que não são realizados no país, inclusive como resultado de ações judiciais. É o caso do transplante multivisceral, quando o paciente precisa transplantar vários órgãos. O custo deste tipo de procedimento gira em torno de R$ 4 milhões.
Este é um tema que há tempos venho me dedicando, quando conheci o caso do menino Samuel, que por conta de uma doença genética, responsável por atingir todo o sistema digestivo, precisa realizar o transplante multivisceral. O menino Samuel personifica a esperança de famílias que aguardam por um transplante. Nos últimos três anos, por exemplo, todas as crianças que passaram pelo transplante multivisceral estão vivas. Mais que isso, estão de fato vivendo.
Para ampliar o número de transplantes e atenuar a dispensa de autorização familiar para doação, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei do Senado 453/2017. De autoria do senador Lasier Martins, o PLS determina que a família não pode interferir na retirada de órgãos de uma pessoa com morte cerebral que tenha manifestado em vida a vontade de ser doadora.
O texto altera a Lei dos Transplantes (Lei 9.434, de 1997) para tornar explícito que o consentimento familiar só será exigido quando o potencial doador não tenha se manifestado expressa e validamente a respeito.
Para saber a opinião dos brasileiros sobre o tema, o Instituto DataSenado realizou uma pesquisa e chegou a um percentual que endossa a aprovação do texto: de acordo com enquete, para 83% dos participantes, a família não pode contrariar decisão de doador de órgãos. Já 15% entendem que a família pode barrar a doação. De acordo com a sondagem, 2% não souberam responder.
A angústia que cerca cada paciente na fila de espera de um transplante é dilacerante. Não se trata apenas de uma vida, mas de diversas pessoas que adoecem junto a quem precisa de um órgão. Por isso é urgente identificarmos meios para que a doação se torne uma pauta natural de reflexão e que motive as pessoas a serem doadores de órgãos e a estimularem a doação .
Gugu deixou um legado além de carisma e talento. Que os brasileiros, que por si só já emanam empatia, sigam o gesto do apresentador que salvou inúmeras vidas quando já não estava entre nós. O Brasil tem muito a aprender e crescer com boas atitudes.