Cesário Melantonio Neto

O mundo contemporâneo e o declínio da felicidade

Há uma sombra em nossa cultura do excesso. E ela paira hoje sobre a humanidade.


O que estamos vivendo são as dores de crescimento da sociedade da abundância
Foto: Foto: Arquivo iG
O que estamos vivendo são as dores de crescimento da sociedade da abundância


Uma das mais enraizadas crenças do nosso tempo é a de que tudo vai sempre melhorando. E crença com bons fundamentos. A mortalidade infantil  caiu 51% desde o ano 2000 e a expectativa de vida  foi de 52 anos em 1960 para 76 anos agora. O fato é que tudo parece indo bem. Mas os índices de felicidade vem declinando e em particular entre os mais jovens. 

É o que diz o World Happiness Report feito pela universidade de Oxford em 140 países. O estudo menciona uma queda substancial da felicidade entre os mais jovens, especialmente na Europa e na América do Norte. Muita gente associa isso a eventos como as mudanças climáticas, o preconceito ou a desigualdade social que voltou a crescer em todo o mundo. 

A explicação pode ser a chamada sobrecarga pelo paradoxo da abundância porque temos acesso fácil a quase tudo. Nosso cérebro evoluiu para lidar com a escassez e não com a abundância. 

Algo está acontecendo com os adolescentes nessa linha apenas com muito mais gravidade. São quarenta horas por semana de dopamina barata via telas e celulares. É um tipo de epidemia. Da qual sejamos francos, ninguém está perfeitamente livre. 

Ninguém sabe bem o que é a felicidade , pois a vida tem a sua dose de sofrimento com a qual temos muito a aprender. Se aceitarmos essa tese, a felicidade poderia vir como uma benção depois de tudo. 

História

Essa tese da vida interessante muda com o tempo. No século XIX era o fascínio pela vida heroica. A vida intensa e curta. 

No século XX o herói foi saindo de cena, e devagar entrou no palco a civilização do bem-estar. Foi o mundinho "homem-massa" descrito por Ortega y Gasset. O tipo que se diverte, circula pelas grandes feiras em Paris e acha que o mundo nasceu meio pronto. 

O tipo que tenta de tudo, que vai aos extremos da paixão, desce ao quinto dos infernos, e opta pelo longo caminho. O bom casamento, a profissão honesta, e um certo desencantamento dado pela ideia de uma vida longa e agradável. 

Tudo que teria horrorizado um Lord Byron ou um Oscar Wilde, a quintessência de um mundo que ia ficando para trás. 

O que estamos vivendo são as dores de crescimento da sociedade da abundância. Tudo ótimo, mas há um custo. Na verdade, há uma curva. Por muito tempo alimentamos a ideia de que dispor de mais liberdade e alternativas levaria a um contínuo ganho de bem-estar. E, portanto, de mais felicidade. 

O ponto é que logo surge o paradoxo. Há um custo para as escolhas. Há uma sensação de perda com o não escolhido. E o sentimento de que as opções feitas pelos outros eram melhores do que as nossas. 

Mesmo o dinheiro atende a essa lógica. A partir de um certo nível de renda, não haveria mais ganhos relevantes de bem-estar. Seria como alguém que em algum momento perdeu a corrida com a sua própria imaginação. O mundo dos romances de um lado e a vida de verdade do outro.

E a partir daí a perda de controle. Quando penso nas taxas de suicídio que cresceram muito nos anos recentes entre adolescentes, essa ideia surge com força. Há uma sombra em nossa cultura do excesso. E ela paira hoje sobre a humanidade. 

Não há solução coletiva para tudo isso. O governo pode até limitar as apostas nas bets, mas não resolve o problema. Pode até regular as redes, mas isso igualmente não resolve esse problema de uma insatisfação coletiva crescente e particularmente entre os mais jovens. 

O excesso não é feito de crimes, mas de sedução alimentada pela publicidade. Nisso reside o nosso problema. Ninguém vai produzir uma boa vida se não for capaz de criar restrições por conta própria à lógica da abundância. Se não descobrir o exato ponto da curva em que tudo que é imensamente positivo entra no vermelho e leva a um caminho de insatisfação sem volta. 

Há muita literatura sobre como retomar esse controle. Limitar nossos campos de interesse, evitar o devaneio da comparação sistemática com os outros. E muito especialmente cultivar a vida off-line. Tratar de viver uma vida interessante, com dores e limites bem estabelecidos. 

Cultivar o próprio jardim segundo uma antiga lição de Voltaire no final de seu Cândido. 

E, se em algum momento a vida o brindar com alguma coisa que você puder chamar de felicidade, agradeça com a alegria de um belo fim de tarde. Agradeça sempre.