Maior cracolândia de São Paulo desaparece após prisões

Trabalho de investigação e inteligência policial, que começou há cerca de um ano e resultou na Operação Caronte, em junho, levou à prisão 92 traficantes

Foto: Edilson Dantas/O Globo
Usuários de drogas saíram da Rua Helvétia

Uma mudança de estratégia da Polícia Civil de São Paulo dificultou a atuação do tráfico de drogas na região da Cracolândia e fez com que o “fluxo”, antes concentrado no quadrilátero entre as alamedas Cleveland, Dino Bueno, Nothmann e a rua Helvétia, se espalhasse por diversos pontos da capital paulista. Em especial, na praça Princesa Isabel, a poucos metros do antigo local de uso e venda de ilícitos.

O trabalho de investigação e inteligência policial, que começou há cerca de um ano e resultou na Operação Caronte, em junho, levou à prisão 92 traficantes e outras dez pessoas por crimes como receptação, furto, roubo e porte de arma.

A peça-chave da operação, segundo a polícia, foram agentes infiltrados que, além de ajudarem a entender a estrutura do tráfico, captaram imagens do comércio de drogas essenciais para viabilizar as prisões.

"A maior conquista da Operação Caronte foi conhecer as entranhas da Cracolândia por meio dessas imagens. Até então, achávamos que o próprio usuário vendia a droga, mas percebemos que existia uma hierarquia, com a figura do traficante, do assistente de traficante, do “disciplina”, que fazia a segurança do local, entre outros" explicou o delegado Roberto Monteiro, da 1ª Delegacia Seccional de Polícia.

Segundo Monteiro, como todos os presos pela operação seguem na cadeia, o tráfico foi sufocado nos últimos meses.

"A Cracolândia deixou de ser interessante para a facção criminosa que atua na região" afirma o delegado. "Isso fez com que traficantes deixassem o local e fossem acompanhados pelos dependentes de crack."

Mudança na venda

Apesar do esvaziamento ter ocorrido de quinta para sexta-feira da semana passada , moradores da região e policiais que atuam no local contaram que já vinham notando uma redução do público no quadrilátero, que chegou a ser ocupado por 4 mil pessoas. De acordo com a polícia, as prisões da Caronte levaram ao aumento do preço da pedra de crack, o que explicaria a peregrinação para outros locais.

Para driblar o encarecimento e a repressão policial, documentos da operação mostram que o tráfico mudou até a forma de vender o crack, que passou a ser encontrado em embalagens de paçoca, partes íntimas de mulheres, colares e até buracos de rua com poças.

Além dos agentes infiltrados, ajudaram a desestruturar a Cracolândia medidas como o fechamento de imóveis ocupados pelo tráfico pelo estado e a prefeitura. A medida é criticada por parte de pesquisadores e ativistas que atuam na região.

"O fechamento dos prédios enfraqueceu o tráfico, mas naqueles locais também moravam trabalhadores que não tinham nada a ver com essa situação. E depois não houve uma ação da prefeitura para o acompanhamento das famílias despejadas e de moradores de rua" afirma Giordano Magri, integrante do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV-SP e pesquisador da Cracolândia.

Com a dispersão, os moradores do Campos Elíseos viram esta semana cenas até então raras. A rua Helvétia virou trajeto de trabalhadores e pais que voltavam com seus filhos da escola no fim da tarde. Na alameda Cleveland, profissionais da zeladoria municipal recuperavam as ruas esburacadas e pintavam paredes com pichações em referência à facção criminosa que dominava a Cracolândia.

A aparente retomada do bairro pôde ser percebida na missa de quarta-feira de uma Igreja no Largo Coração de Jesus.

"Melhorou muito depois que esvaziaram a Cracolândia. As pessoas não queriam ir para a missa por medo do trajeto, e muitas vezes a igreja ficava vazia. Agora os fiéis já estão vindo" afirmou a empregada doméstica Joseane dos Santos, de 38 anos, que mora no bairro há dez anos e passa diariamente pela alameda Dino Bueno.

Praça ocupada

Mas a tranquilidade na região que por 30 anos abrigou a maior concentração de usuários da capital já não paira a pouco mais de 400 metros de distância, na praça Princesa Isabel, onde a polícia calcula que esteja um terço do público da Cracolândia.

Moradores e comerciantes da região contam que, em meados de setembro, quem passava pela praça notava alguns moradores de rua. Mas atualmente há tantas barracas no entorno que mal dá para enxergar a parte interna da praça, onde fica um monumento em homenagem a Duque de Caxias. Para se ter alguma noção da quantidade de pessoas morando ali, é preciso olhar de um andar alto de um dos prédios da avenida Duque de Caxias.

"Quem estava na Cracolândia veio para cá. Eles mudaram de lugar porque lá (no quadrilátero) a polícia passa" disse L.A.S, de 50 anos, usuário de crack e que mora há sete anos nas proximidades da praça.

Segundo ele, o comércio da droga continua ocorrendo normalmente:

"Só mudou o lugar."

O impacto da mudança é sentido pelos comerciantes. O gerente de um hotel em frente à praça, que preferiu não ser identificado, contou que a ocupação dos quartos caiu de 70% para 30%, por conta do medo, apesar de diversas bases policiais em todo o quarteirão.

Para pesquisadores ouvidos pelo GLOBO, a dispersão da Cracolândia para diversos pontos da capital paulista deve dificultar o trabalho policial de combate ao tráfico de drogas.

"Uma vez que o comércio se dispersa, exige-se também o monitoramento de uma área maior e um serviço de inteligência mais complexo" diz Magri.

"Como os traficantes perceberam que iriam perder a mercadoria ou serem presos, adotaram a estratégia de dissipar para serem menos visíveis" afirma o professor da FGV e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani. "É possível quea difusão dificulte o trabalho da polícia na atuação contra pequenos roubos e contra o próprio tráfico."

'Vitória de Pirro'

Além da praça Princesa Isabel, há relatos de “minicracolândias” em Santa Cecília e no entorno da Avenida Paulista. A polícia diz que já trabalha em novos pontos de venda e é mais fácil reprimir e aplicar políticas públicas em grupos menores.

Funcionários da prefeitura, ouvidos sob anonimato, afirmaram que é mais difícil atender usuários de droga na praça Princesa Isabel . Ao contrário do que havia na antiga Cracolândia, eles são impedidos de entrar e ficam nos arredores, à espera de um pedido de atendimento. Mas a prefeitura, em nota, informou que, de 18 a 21 de março, fez 1.633 abordagens na região da praça, onde há cerca de 255 barracas, e vai contratar 3.202 vagas em hotéis para abrigar mais usuários.

"Os consultórios de rua que acompanhavam a área foram pegos de surpresa. Havia pacientes em tratamento. Está sendo difícil localizar essas pessoas" afirmou Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua. "É uma vitória de Pirro."

O vai vém da Cracolândia

Entre 800 e 1.500 pessoas ocupavam a Cracolândia de São Paulo até a última operação policial. Mas a região é um desafio para a cidade que se arrasta há mais de 30 anos. Entre várias ações de segurança já feitas, a região carece ainda de medidas de saúde e assistência social.

2012

Em janeiro de 2012, na gestão do prefeito Gilberto Kassab (PSD), a polícia iniciou uma operação de combate ao tráfico na região, que resultou em dispersão. No fim do mês, a Cracolândia havia se espalhado por 27 bairros. Dezenas de usuários foram encaminhados a centros de tratamento, e outras dezenas foram presos. Foi uma operação criticada à época pelo uso de balas de borracha e bombas de efeito moral. Focada em segurança, não deu solução aos usuários de crack, e o consumo voltou a se concentrar no Centro de São Paulo tempos depois.

2014

Em janeiro de 2014, cerca de dez viaturas do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), da Polícia Civil, cercaram os usuários de crack que se concentravam na rua Barão de Piracicaba. Os agentes atiraram balas de borracha e bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Os usuários revidaram com pedras. Algumas pessoas foram presas. Prefeitura e Polícia Militar disseram não ter sido avisadas da operação. E a Cracolândia seguiu.

2017

Em maio de 2017, o governador João Doria, então prefeito, ordenou uma operação de segurança com mais de 900 agentes com a promessa de que acabaria com o consumo e a venda de drogas na região. Ruas antes fechadas por barracas de vendas de droga foram reabertas, e o número de usuários no local diminuiu. Mas a Cracolândia não acabou. A maioria dos usuários se concentrou na Praça Princesa Isabel, como agora. Um mês depois, voltaram para o mesmo lugar. E pequenas cracolândias se espalharam pela cidade.

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