
Duas das mais emblemáticas expressões culturais do Rio de Janeiro, a Praça XV e a Feira de São Cristóvão, seguem firmes como representação da memória histórica e da diversidade popular da cidade.
Mesmo diante das transformações urbanas, das pressões econômicas e das mudanças no perfil dos frequentadores, esses espaços continuam desempenhando um papel importante na valorização das tradições e no fortalecimento da identidade cultural carioca.
Praça XV: história a céu aberto e relíquias vivas
Localizada no centro histórico da cidade, a Praça XV de Novembro é um dos lugares mais simbólicos da cidade do Rio de Janeiro. Desde o período colonial, o espaço foi palco de acontecimentos importantes — como a chegada da família real portuguesa e a proclamação da República. Mas além da relevância histórica, a Praça XV sempre funcionou como um ponto de circulação de pessoas, cultura e comércio.

Nos dias atuais, o local abriga feiras de antiguidades, exposições artísticas, apresentações culturais e continua sendo um elo entre o passado e o presente. Mesmo com os desafios impostos pela degradação urbana, pela insegurança e pelas reformas viárias, a Praça XV mantém seu valor como ponto de encontro da memória carioca, atraindo tanto turistas quanto moradores em busca de história viva.
O historiador Helanio Gabriel, frequentador assíduo da feira, afirma que o que o mantém voltando é a sensação de caminhar entre o tempo e a memória. “A Feira da Praça XV é mais do que um lugar de compra, é um espaço onde a história respira e vive” , destaca, em entrevista ao Portal iG.

Ele relembra achados marcantes, como moedas do Império, jornais dos anos 1950 e livros raros, além de objetos que conectam sua pesquisa histórica pessoal à materialidade encontrada ali. “É um tipo de vivência cultural e afetiva que mantém viva a tradição” , afirma.
Para ele, o que torna a feira insubstituível é o toque humano: “Acredito que a feira resiste porque oferece algo que a internet não consegue replicar: o encontro humano, o acaso e o toque.”
E reforça, ligando tradição e contemporaneidade: “A feira é uma ponte entre o que fomos e o que somos. Se ela acabasse, perderíamos um espaço único onde a história pode ser tocada, cheirada, vivida. Faltaria também o encontro com pessoas que compartilham da mesma paixão pelo passado: colecionadores, vendedores, curiosos. Seria como fechar um livro raro antes de terminar a leitura.”
Feira de São Cristóvão: o Nordeste que pulsa no Rio
Já na Zona Norte da cidade, a Feira de São Cristóvão — oficialmente Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas — segue como um dos maiores redutos da cultura popular nordestina fora do Nordeste. Fundada nos anos 1940 por migrantes que buscavam manter vivas suas raízes, a feira cresceu, ganhou estrutura e hoje abriga mais de 700 barracas que oferecem desde culinária típica até música ao vivo, artesanato e literatura de cordel.

Marcus Lucena, artista e ex-gestor cultural da Feira, destaca ao iG que o espaço é uma verdadeira síntese da cultura nordestina. “A base da cultura nordestina está ali na feira. Temos as xilogravuras, o cordel, os foguetes juninos, a boa música e a boa comida” . Para ele, quem chega sem conhecer o Nordeste, sai da feira iniciado — pelo paladar, pelo som ou pelas histórias contadas nos versos e nas barracas.
A música é um dos pilares mais fortes da feira. São sete palcos espalhados, dos grandes às estruturas menores dedicadas ao forró pé de serra, ao reggae e aos repentistas. “A feira pulsa, é um espaço de fluência de público. O músico que toca nesse espaço é requisitado para se apresentar em bares e restaurantes fora daqui. O carimbo da feira agrega valor” , reforça Marcus.

Outro destaque é a gastronomia, com restaurantes que variam do simples ao sofisticado. Alguns empregam até 70 pessoas, outros são tocados por famílias. “É como uma cidade. Tem de tudo” , diz Marcus. O faturamento do setor, segundo ele, é expressivo — principalmente para os estabelecimentos bem organizados, localizados nas principais ruas do pavilhão.
E durante o período junino, a feira atinge seu auge. “É hegemônica. Nenhum outro ponto turístico do Rio atrai tanto público nessa época. É onde o Nordeste se afirma com força, inclusive nas cidades fluminenses que recebem muitos nordestinos” , afirma. Nesse momento, a Feira de São Cristóvão não é apenas um espaço de tradição — é um palco vivo de memória, resistência e celebração.

Mesmo com as dificuldades trazidas pela pandemia e os entraves na captação de recursos para manutenção e fomento da cultura, o espaço tem buscado se reinventar. Marcus conta que há um projeto aprovado por leis de incentivo à cultura, mas a arrecadação dos recursos, via renúncia fiscal, ainda é um desafio. A gestão atual também tem se aproximado da Prefeitura do Rio para tentar viabilizar apoio e fortalecer ações formativas para as novas gerações de artistas e fazedores culturais do Nordeste.