Dez dias de campana: como a PF derrubou uma fábrica de ghost guns

Fabricação industrial de armas fantasma e nomes que nunca aparecem: investigação revelou rede clandestina que alimenta arsenal de facções do país

Fuzis AR-15 tipo ghost gun apreendidos pela Polícia Federal em operação que desmantelou fábrica clandestina em Santa Bárbara d'Oeste e Americana, no interior de SP.
Foto: Acervo Polícia Federal / Núcleo Técnico-Científico
Fuzis AR-15 tipo ghost gun apreendidos pela Polícia Federal em operação que desmantelou fábrica clandestina em Santa Bárbara d'Oeste e Americana, no interior de SP.

Durante dez dias, dois policiais federais transformaram a rotina monótona de um homem comum em um arquivo de indícios que explodiu numa tarde de agosto. O alvo era uma fábrica clandestina de ghost guns — armas fantasma, montadas com componentes que não aparecem no sistema oficial. Como não possuem registro, são praticamente impossíveis de rastrear pelas autoridades, tornando-se o arsenal preferido das  facções criminosas e o pesadelo para a segurança pública.

Não havia pressa naqueles dias. Havia paciência. Havia método. O policial federal Roberto C., 26 anos de carreira, começou onde todos os experientes investigadores devem começar: em um banco de dados. Alguém havia sussurrado à Polícia Federal que Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo, 37 anos, era envolvido na fabricação ghost guns. Uma denúncia. Uma pista.

O investigador Roberto e seu colega, o novato Gabriel S.  — dois anos e dez meses na Polícia Federal —, não correram. Pesquisaram. Vasculharam os bancos de dados do sistema federal. E então começaram a ver. Primeiro, descobriram onde ele morava: Parque Universitário — Campinas, interior de São Paulo. Endereço comum, rua como tantas outras, mas para os investigadores era o ponto de partida. Era dali que tudo se desenrolaria.

Depois vieram os padrões. Janderson deixava a filha na escola pela manhã. Todos os dias, ou quase todos. Depois desaparecia. Ia para algum lugar que os federais precisavam descobrir. Esse lugar era a avenida Dirceu Dias Carneiro, número 339, no Distrito Industrial de Santa Bárbara d'Oeste, também no interior de São Paulo, perto de Campinas. Uma fábrica onde a placa dizia Kondor Fly . Mas os federais não acreditavam se tratar apenas de uma fábrica comum, na rotina de um homem comum.

Entrada da fábrica Kondor Fly localizada na Avenida Dirceu Dias Carneiro, número 339, no Distrito Industrial de Santa Bárbara d'Oeste (SP), onde eram fabricadas clandestinamente ghost guns.
Foto: Acervo Polícia Federal / Investigação Operacional
Entrada da fábrica Kondor Fly localizada na Avenida Dirceu Dias Carneiro, número 339, no Distrito Industrial de Santa Bárbara d'Oeste (SP), onde eram fabricadas clandestinamente ghost guns.


Dez dias de vigilância

A observação dos federais revelou uma verdade que desmentia a fachada: a fábrica funcionava de forma estranha. Roberto e Gabriel notaram, em seus dez dias de vigilância, que a Kondor Fly permanecia fechada em dias úteis. Em uma semana, estaria aberta. Na próxima, trancada. Sem o padrão de uma indústria normal. Mas operava — intensamente — em finais de semana. E mais: operava à noite. Quando a maioria das fábricas estava parada, a Kondor Fly  operava em ritmo intenso.

Janderson estava lá à noite. Apenas ele e Anderson Custódio Gomes, 33 anos, programador de máquinas CNC (Computador Numérico Controlado) de formação, trabalhando no mesmo turno noturno, das 18h até as 4 da manhã do dia seguinte. Dez horas juntos em uma fábrica que supostamente produzia componentes para aviões ou peças automotivas.

Roberto e Gabriel viram algo mais naqueles dez dias. Viram Janderson sair da fábrica carregando caixas aparentemente pesadas. Não uma vez. Repetidas vezes. Caixas que desapareciam de forma que não faziam sentido. Caixas que mereciam atenção.

Bunker em Americana: Onde armas desapareciam

Em um dos dez dias de campana, os federais acompanharam Janderson deixando a fábrica. Renault Kwid alugado, cor prata. Sentido: Americana — a 45 km de Campinas, cidade diferente, rastro diluído. Quarenta minutos depois, rua Ibitinga, número 817, Parque Novo Mundo. Imóvel que não aparecia na documentação oficial relacionada a Janderson .

Foto: Acervo Polícia Federal / Investigação Operacional
Imóvel localizado na rua Ibitinga, Parque Novo Mundo, em Americana (SP), utilizado como bunker para armazenamento e distribuição de ghost guns.


Ele estacionou. Abriu o porta-malas com movimento de quem conhece o trajeto. As caixas foram transferidas para dentro do imóvel, porta de garagem fechada em minutos. Os federais documentaram que essa transferência aconteceu pelo menos três vezes durante o período de monitoramento encoberto. O imóvel de Americana não era lar de Janderson. Era depósito . Ponto de armazenamento estratégico em cidade diferente, longe da fábrica, longe da origem, provavelmente próximo a rotas de distribuição.

No dia 21 de agosto de 2025, os federais Roberto e Gabriel mantiveram vigilância na fábrica Kondor Fly . Por volta das 17 horas — horário em que a maioria dos trabalhadores estaria saindo, mas a fábrica continuaria vazia — Janderson foi à calçada e olhou atentamente a movimentação de pessoas. Não era um olhar casual. Era o olhar de quem mede riscos. Quinze minutos depois, motor do Kwid ligado e, outra vez, asfalto rasgado rumo a Americana.

Roberto e Gabriel pediram o apoio da Polícia Militar . E aquilo que tinha começado dez dias antes em um banco de dados — uma pista, uma suspeita — virou operação coordenada. O Kwid foi acompanhado de forma encoberta. Uma Parati prata — o carro de Anderson — juntou-se ao Kwid no caminho. Dois operadores movendo o mesmo produto, na mesma hora, pelo mesmo trajeto — para os federais, não era coincidência.

Quando os dois carros chegaram a Americana, quando estacionaram na rua Ibitinga, quando os dois homens saíram carregando caixas — nesse momento, dez dias de vigilância invisível viraram um flagrante criminal visível. Foram os policiais militares quem abordaram Janderson e Anderson.

Os federais invadiram a casa-depósito. Trinta e um mil cento e quarenta e cinco componentes de armas de fogo foram encontrados — montados, desmontados, em vários estados de fabricação. Receptores de AR-15 . Canos. Coronhas. Dois silenciadores. Munição. Tudo armazenado em imóvel comum. Os federais Roberto e Gabriel compreenderam: Janderson e Anderson fabricavam armas que nunca seriam rastreadas pelo sistema assim que saíam daquela fábrica. Armas que, apreendidas em uma atividade criminosa, nunca revelariam rastro até sua origem.

Como as ghost guns funcionam

Foto: Acervo Polícia Federal / Núcleo Técnico-Científico
Caixa com componentes de fuzil AR-15 apreendidos pela Polícia Federal contendo manual técnico 'TOP 18 MODS - Every AR15 Owner Should Master', indicativo de operação sofisticada de customização e modificação de armas.











Para compreender a sofisticação da operação, é necessário entender o que torna ghost guns tão valiosas para o crime organizado.

Ghost guns são armas montadas a partir de componentes comerciais legais — gatilhos, molas, mecanismos eletrônicos disponíveis no mercado. O segredo criminal está em um componente específico: o receptor, estrutura metálica que abriga o mecanismo de disparo. Quando fabricado clandestinamente, sem número de série, torna a arma inrastreável.

No Brasil, o receptor é considerado componente crítico e controlado pela lei — sua fabricação clandestina, sem número de série, transforma-o em instrumento de crime porque permite a montagem de armas que nunca foram registradas e nunca poderão ser rastreadas pela polícia.

O que os policiais encontraram no imóvel da rua Ibitinga, 817, transformou-se na peça central da investigação federal. Não era um simples depósito. Era parte da infraestrutura de uma distribuição clandestina. Essa quantidade de material não era hobby . Era volume industrial. Produção planejada para venda sistemática no mercado clandestino.

Os federais chamaram aquela casa de bunker — termo que designa depósito de armas clandestinas. Um bunker em bairro residencial de Americana. O padrão de ocultação não recorria a fortalezas distantes, mas à banalidade de um simples endereço urbano, protegido não por sua inacessibilidade, mas pela invisibilidade do cotidiano. Quando os policiais federais e militares invadiram aquele imóvel, também encontraram: fuzis montados, munições e dois silenciadores para abafar o barulho de tiro. Material bélico organizado, pronto para distribuição.

A sofisticação da operação manifestava-se também em sua estrutura de distribuição. Segundo o policial militar Danilo Marco — que conduziu a abordagem de 21 de agosto — Janderson e Anderson declararam, logo após a prisão, que as armas "eram montadas e vendidas para várias facções criminosas do país, sendo a maioria das vendas para a cidade do Rio de Janeiro".

Isso significa que as armas fabricadas em Santa Bárbara d'Oeste não ficavam em Americana . Circulavam para múltiplos estados — São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Ceará — tornando-se instrumentos potenciais de crime, tráfico, execuções.

O silêncio 

Mas essa confissão inicial dos presos teve prazo de validade. Quando a Polícia Federal iniciou interrogatórios formais, Janderson e Anderson simplesmente pararam de falar. O silêncio foi imediato. A mudança de comportamento era reveladora: era o silêncio de quem conhece hierarquia operacional acima deles e sabe que qualquer informação oferecida comprometeria estruturas maiores.

Janderson ficou quieto quando confrontado com evidências específicas: documentação do imóvel da rua Ibitinga, registros de aluguel do Kwid, componentes de AR-15 apreendidos, informações sobre destinatários. Esse silêncio seletivo — admitindo fatos menores, recusando-se em tópicos estruturais — é interpretado em direito processual penal como admissão tácita.

Juridicamente, quando confrontado com evidência material específica que poderia facilmente negar (se fosse inocente), o acusado que escolhe o silêncio indica, implicitamente, que não consegue negar legitimamente porque sabe que está envolvido. Essa interpretação não resulta em condenação automática, mas funciona como elemento probatório relevante que reforça a tese acusatória e justificou, neste caso, a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva.

Quando Janderson e Anderson foram conduzidos à Delegacia da Polícia Federal em Campinas, foram informados de seus direitos constitucionais. A partir daquele momento, ambos optaram por permanecer em silêncio. Essa escolha tática é reveladora para os federais. É decisão fundamentada em aconselhamento legal ou consciência de culpa tão evidente que qualquer palavra tornaria o caso mais explícito. Esse padrão é interpretado em direito processual como fortalecimento de culpa. Se o acusado não consegue explicar o que o coloca na cena do crime com aquele produto específico, essa ausência de explicação torna-se evidência.

No mesmo dia 21 de agosto de 2025, o juiz da 1ª Vara Criminal de Americana homologou a prisão em flagrante, convertendo-a em prisão preventiva com fundamento na "garantia da ordem pública". A decisão reconhecia que os investigados representavam risco não de fuga, mas de continuidade operacional ilícita.

Estrutura invisível

Na investigação dos federais, três figuras emergiram com papéis distintos e contraditórios: Wendel dos Santos Bastos, proprietário legal da operação; Mikhail Carvalho (identificado por Wendel como "Milque"), coordenador operacional citado apenas por Wendel; e uma certa Vitória, gestora financeira também identificada apenas nos relatos de Wendel.

Wendel apresentou uma documentação corporativa extensa: constituição da empresa BSW Usinagem com CNPJ regularizado, contratos de locação do imóvel, notas fiscais de máquinas, apólice da Bradesco Seguros para R$ 590.000,00.

Trinta e três links de anúncios publicados por Wendel em plataformas digitais como Facebook Marketplace e grupos especializados em equipamentos industriais replicavam a narrativa de empresa consolidada. Máquinas de usinagem legítimas, com preços comerciais reais, distribuídas em múltiplas plataformas — evidência que sua defesa utilizou para demonstrar "atuação estabelecida no segmento".

Mas os investigadores interpretavam a mesma documentação de forma distinta: uma fachada corporativa deliberadamente construída não para justificar tudo, mas para naturalizar a presença de máquinas CNC de precisão industrial que, noites inteiras, usinavam receptores de armas.

Quando confrontado sobre o que realmente acontecia sob seu teto, a narrativa de Wendel começou a desmoronar. Ele mencionou que Mikhail Carvalho era o coordenador operacional, utilizando telefone dos Estados Unidos para comunicação inicial, depois números brasileiros, sugerindo mobilidade estratégica e sofisticação. Também citou Vitória como responsável pelo setor financeiro, operando com números da Região Sudeste, indicando gestão financeira centralizada e separada dos executores operacionais.

O problema de Wendel: nenhum desses dois nomes constava de forma verificável, rastreável. Mikhail nunca foi localizado. Vitória permanece como entidade fantasmagórica. E quando investigadores pediram a Wendel detalhes específicos sobre essas duas figuras — endereços, documentos, históricos — ele não conseguiu (ou não quis) fornecer informações que permitissem rastreamento.

Pela análise dos policiais federais, uma questão paralela merece atenção: a documentação legítima que cobria a operação da Kondor Fly funcionava como escudo contra suspeitas. Prestadores de serviços circulavam pela fábrica sem jamais questionar o que ali acontecia. Empresas como a Bradesco Seguros, fornecedores, plataformas de anúncios não viam crime — viam uma empresa comum. Na visão dos federais, Wendel havia construído uma fachada corporativa tão robusta que praticamente se tornava invisível.

Essa dualidade não é exceção. É padrão em investigações como essa: manter fachada corporativa legítima — pagando tributos, seguros, operando com documentação oficial — para adquirir legitimidade que proteja operações criminosas simultaneamente desenvolvidas.

A questão investigativa que os federais tentam descobrir é: até que ponto Wendel tinha conhecimento efetivo do desvio de sua estrutura legal para fins criminosos? Isso ainda é investigado pela Polícia Federal . Os relatórios dos policiais indicam incompatibilidade sistemática entre versões. Wendel menciona pessoas — Mikhail Carvalho, Clayton Ribeiro, Vitória, Gabriel Carvalho Belchior, piloto de avião e sócio da Kondor Fly — que outros investigados desconhecem. Alguns "não teriam sido localizados", sugerindo possível proteção intencional ou desconhecimento real.

Para os investigadores federais: "as declarações prestadas por Wendel e Gabriel, conjugadas com aquelas fornecidas por Anderson e Janderson, revelam que nenhum deles apresentou uma versão minimamente compatível com o cenário apurado até o momento".

Essa incompatibilidade não é mera contradição. É arquitetura. A compartimentalização era tão rigorosa que nenhum núcleo da operação tinha visibilidade clara sobre os outros. Wendel, proprietário legal da fábrica, talvez não conhecesse plenamente o que acontecia sob seu teto. Janderson e Anderson operavam em células separadas. "Milque" — o codinome usado por Wendel para identificar Mikhail Carvalho — permanecia inacessível.

Os investigadores constataram que cada detalhe — horários atípicos, treinamento sem documentação, pagamento sem registro formal, fabricação de armas sem número de série — funcionava em conjunto como sistema de proteção em camadas. Não era apenas sigilo . Era uma engenharia do anonimato.

A fábrica não tinha horário previsível — fechava em dias úteis aleatórios, abria em fins de semana, funcionava durante períodos noturnos quando não há tráfego de pessoas nem vigilância, quando máquinas CNC operando continuamente seriam menos notadas entre ruído industrial noturno.

Janderson nunca recebeu treinamento formal documentado. Aprendeu "com outros funcionários e conhecimento prévio" — sugerindo treinamento em privacidade, longe de registros. Seu salário de R$ 3.500,00 mensais era mantido sem vínculo empregatício formal: nenhum FGTS, nenhum rastro em bancos de dados, pagamento em formas que deixam menos marca no sistema financeiro.

A escolha de fabricar ghost guns — armas sem número de série — oferecia proteção final: mesmo se polícia rastreasse a arma capturada em um crime até a Kondor Fly, não haveria registro oficial dessa arma. Não haveria como conectar a fabricação à venda. A arma simplesmente não existiria nos registros oficiais.

Os envolvidos na investigação federal:

Foto: Banco de Dados Investigação
Os dois presos pela Polícia Federal. À esquerda: Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo, 37 anos. À direita: Anderson Custódio Gomes, 33 anos.


1. Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo
Função: Operador técnico, coordenador operacional da produção. Programação de máquinas CNC, supervisão de fabricação de componentes
Status: Preso em flagrante (21 de agosto de 2025), com conversão em prisão preventiva
Defesa:  O defensor sustenta que não há evidência de que as peças
foram comercializadas ou destinadas a armas funcionais; Janderson
é primário, sem antecedentes criminais convictos, e não oferece
risco de fuga ou reiteração delitiva conforme exige a lei; a
prisão preventiva foi decretada por "mera suposição", violando
o direito à liberdade e à presunção de inocência.

2. Anderson Custódio Gomes
Função: Operador técnico de máquinas CNC, parceiro operacional de Janderson. Transporte e armazenamento dos produtos fabricados
Status: Preso em flagrante (21 de agosto de 2025), com conversão em prisão preventiva
Defesa:  O advogado Guilherme Mendes Arantes Oliveira argumenta que Anderson não usou violência ou ameaça durante o crime atribuído a ele; que as peças encontradas nunca foram testadas e comprovadas como perigosas; que Anderson nunca havia cometido crime antes e tem endereço fixo, sem risco de desaparecer ou repetir o delito; que mantê-lo preso antes de julgamento é injusto e viola seus direitos fundamentais; e que Anderson sofre de problema nas cordas vocais desde 2023 e teve ferimentos graves em acidente motociclístico, precisando de tratamento hospitalar — argumentos rejeitados pelo tribunal em outubro de 2025, que considerou a operação como muito séria para permitir sua libertação, apesar de ele ser primário.

3. Wendel dos Santos Bastos
Função:
Proprietário legal das máquinas e locatário do imóvel. Responsável pela manutenção dos equipamentos e arrendamento da estrutura física
Status:  Não foi preso em flagrante — indiciado posteriormente
Defesa:  Argumenta que é mero proprietário/arrendador, sem participação direta na fabricação de ghost guns

4. Gabriel Carvalho Belchior
Função:
Sócio da empresa Kondor Fly, fornecia estrutura empresarial. Estrutura legal para operação; contrato de arrendamento com Wendel
Status:  Não foi preso em flagrante — indiciado posteriormente
Defesa: Prestou depoimento à Polícia Federal em 8 de setembro de 2025 e negou ligação com a fabricação de armas

Foto: Banco de Dados Investigação
À esquerda: Wendel dos Santos Bastos, locatário do imóvel da fábrica Kondor Fly. À direita: Gabriel Carvalho Belchior, sócio da empresa e piloto executivo


Os denunciados pela Promotoria à Justiça são réus por:

Organização Criminosa (Lei 12.850/2013, artigos 2º e §2º) — por integrarem estrutura organizada com divisão de tarefas e objetivo comum de fabricação e distribuição de armas;
Fabricação Clandestina de Armas de Fogo (Lei 10.826/2003, artigos 16, caput, e 17, §1º) — pela produção não autorizada de receptores de fuzis e demais componentes de armamento;
Crime Continuado (Código Penal, artigo 69, caput) — por caracterizarem prática sistemática e reiterada, não episódios isolados;
Posse Ilegal de Armas e Acessórios de Uso Restrito (Lei 10.826/2003, artigo 16, caput) — pela detenção de 31.145 componentes de armas de fogo e silenciadores sem autorização legal.

Quanto lucraria a fábrica de ghost guns

De acordo com a investigação dos federais, as contas revelam o grau de organização do crime: foram apreendidos 31.145 componentes, mas esse número, isolado, não captura a dimensão da engrenagem financeira e operacional que funcionava nos bastidores da Kondor Fly .

Com a estrutura disponível e o conhecimento técnico de Janderson e Anderson, a estimativa dos federais é de que a fábrica tinha capacidade para entregar aproximadamente 3.500 fuzis por ano, algo em torno de 291 por mês.

Mas o verdadeiro segredo do negócio estava na venda: um fuzil AR-15, no mercado clandestino brasileiro, pode alcançar de R$ 50 mil a R$ 70 mil por unidade, conforme mercado clandestino monitorado pela PF. Com a estrutura disponível e os custos fixos confirmados nos autos (R$ 82.500 mensais — incluindo R$ 69 mil em arrendamento de máquinas, R$ 6.500 de aluguel e R$ 7 mil em salários "por fora" para os operadores), a rentabilidade era astronômica.

Em cenários que variam do conservador ao otimista, a margem bruta mensal poderia oscilar entre aproximadamente R$ 1 milhão a quase R$ 6 milhões, dependendo do volume comercializado. Ao longo de um ano, esses valores ultrapassariam facilmente os R$ 12 milhões até mais de R$ 70 milhões.

É a lógica do crime organizado sofisticado: alto investimento em infraestrutura técnica e compensação para operadores, mas retorno que justifica todos os riscos — e que permite financiar estruturas de distribuição em múltiplos estados, possível corrupção de agentes públicos, e expansão contínua do negócio criminoso.

Para os investigadores federais, parte expressiva dessa produção das ghost guns era escoada para locais violentos do Brasil — com destaque para Rio de Janeiro, Bahia, Ceará, Minas Gerais e São Paulo — alimentando mercados clandestinos conectados a facções de alcance nacional.

Arquivo PCC: Uma conexão

Foto: Acervo Polícia Federal / Perícia Digital
Modelo tridimensional em formato STEP (linguagem universal de desenho industrial) de peça para o fuzil AR-15, identificado no arquivo digital 'pcc-9-upper-1.snapshot.1.zip' e apreendido durante investigação da Polícia Federal.


Entre milhares de arquivos extraídos de computadores apreendidos na Kondor Fly, um arquivo chamou a atenção: o nome que carregava era tão explícito que exigia interpretação forense. O arquivo se chamava pcc-9-upper-1.snapshot.1.zip . A investigação tenta confirmar se é uma referência à  facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).

Segundo os peritos da Polícia Federal, o arquivo foi baixado pela internet em 9 de janeiro de 2025, às 13h35, por meio de um serviço de distribuição de dados oferecido pela Amazon Web Services (AWS), plataforma Cloudfront . O arquivo pesava 1.151.803 bytes — pouco mais de 1 MB — tamanho reduzido para um modelo 3D industrial, mas adequado para transmissão rápida e clandestina.

Quando descompactado, revelava apenas um arquivo interno: "MPG 9 Upper.STEP" — um modelo tridimensional em formato STEP, linguagem universal de desenho industrial utilizada por máquinas CNC de fabricação de precisão. O que o arquivo continha era o projeto de um receptor superior de fuzil AR-15 — especificamente, o componente identificado pela terminologia do mercado armamentista como "upper receiver", a peça traseira do mecanismo de tiro — a parte que, quando acionada, inicia a sequência que dispara o projétil.

A perícia estabeleceu que o arquivo havia sido baixado em um notebook Dell modelo P105F, registrado com o nome de usuário "clayt". Na pasta Downloads deste mesmo computador, os peritos localizaram documentação pessoal: um currículo de Clayton Combe Ribeiro, identificado como "Projetista" com qualificações específicas em "Conhecimento em projetos mecânicos Autocad e SolidWorks" e "Mais de 5 anos de experiência em preparação de máquinas de usinagem de precisão CNC".

Clayton Combe Ribeiro nunca havia sido mencionado nos depoimentos iniciais de Janderson ou Anderson. Seu nome havia sido citado, de passagem, por Wendel, mas os investigadores não conseguiram localizá-lo. Agora, com a evidência digital, ele emerge na investigação como operador técnico potencial, capaz de programar máquinas de usinagem para reproduzir projetos de armas baixados da internet.

Arquivos digitais: Projetos de armas circulam globalmente

O significado do arquivo pcc-9-upper-1.snapshot.1.zip multiplicou-se quando os investigadores descobriram que não era solitário. A análise do histórico de downloads do computador de Clayton revelou 27 arquivos baixados do mesmo repositório Cloudfront — todos em período concentrado entre setembro de 2024 e fevereiro de 2025.

A análise forense categorizou esses 27 arquivos. Entre eles: receptores inferiores de fuzis comerciais, fuzil FAL (modelo militar internacional), carregadores de fuzil, fuzil suíço SG 510, pistola ER32, réplicas estilo AR-15, receptores de arma calibre .308, componentes de mecanismo automático — e, em destaque, o arquivo pcc-9-upper-1 que se destacava de todos os outros.

A perícia descobriu que todos esses 27 arquivos foram compactados e armazenados em formato ZIP — protocolo de compressão que permite agrupamento de múltiplos arquivos sob senhas ou restrições de acesso. Juntos, ocupam aproximadamente 78 gigabytes após descompactação.

Todos os arquivos foram baixados de endereços URL específicos no serviço Cloudfront da Amazon AWS — plataforma que oferece serviço de "distribuição de conteúdo" (Content Delivery Network - CDN). Um detalhe: os investigadores solicitaram à Amazon Web Services — que possui escritório no Brasil — informações cadastrais sobre quem fez upload dos arquivos, incluindo endereço IP, data e hora, registros de conta. Isso significa que a cadeia de origem dos projetos de armas — quem os criou e os hospedou no servidor AWS — pode ser rastreada.

Da internet ao metal

Foto: Acervo Polícia Federal / Perícia Técnica Criminal
Perícia da Polícia Federal em ghost guns, modelo do fuzil AR-15, após apreensão no bunker de Americana (SP).


Mas por que o arquivo específico de um receptor AR-15 — componente crítico para a fabricação de armas — estava nomeado com provável referência ao PCC ?

De acordo com análise dos investigadores, existem interpretações viáveis:

Interpretação 1 - Marcação de Demanda: O arquivo "pcc-9-upper-1" pode significar "PCC order 9, upper receiver version 1" — sistema de nomenclatura que permite rastreamento interno de encomendas. Clayton Ribeiro baixaria variações de projetos conforme demanda do PCC: "pcc-1-lower", "pcc-2-mag", "pcc-3-trigger-group", etc.

Interpretação 2 - Customização Faccionária: O número "9" pode referir-se a calibre .9mm (padrão em pistolas de facções), indicando que o projeto estava customizado especificamente para demanda do Primeiro Comando da Capital — talvez com particularidades técnicas (ângulo de encaixe, tolerância de precisão) diferentes de projetos de uso civil.

Interpretação 3 - Catálogo Estruturado: A nomeação sistemática sugeria que havia catálogo de projetos já organizados, implicando que o fluxo não era caótico — era operação com padrão administrativo, onde cada projeto era identificado, versionado e rastreável internamente.

O que transforma o arquivo pcc-9-upper-1.snapshot.1.zip em evidência crucial é sua função como ponto de conexão entre o Brasil e infraestrutura internacional de fabricação de armas. Clayton Ribeiro não inventava projetos. Baixava-os de repositório hospedado em servidor global (AWS). Depois, programava máquinas CNC locais para reproduzi-los em metal — em fábrica clandestina que fingira ser empresa de usinagem aeronáutica legítima.

A sequência operacional em investigação funciona assim: demanda chega (possivelmente de Mikhail Carvalho, o "gerente operacional" fantasmagórico); Clayton ou alguém em sua estrutura baixa projeto específico do repositório internacional; Anderson ou Janderson programa máquina CNC com base no modelo 3D ; receptor é usinado em metal, muitas vezes ao longo de noites inteiras; componente é armazenado em bunker em Americana; vendas ocorrem em múltiplos estados — especialmente Rio de Janeiro, segundo confissão inicial.

Ironicamente, mesmo tentando se proteger através de anonimato e compartimentalização, os operadores da fábrica de ghost guns deixaram rastro digital explícito. Ninguém precisa nomear um arquivo "pcc-9-upper-1.zip" se quer manter operação clandestina. Poderia chamar-se "3d-model-receiver-v9.zip" ou apenas um código alfanumérico. O nome revelava confiança em estruturas compartimentalizadas — confiança de que quem acessava aquele notebook já sabia que PCC era o cliente.

Ou revelava negligência: operadores técnicos focados em funcionalidade mecânica, não em segurança operacional . Alguém — Clayton, ou alguém usando sua conta — havia organizado arquivos de forma que facilitava seu próprio trabalho, sem compreender as implicações forenses de cada clique, cada download, cada arquivo nomeado.

O que ainda é investigado pela PF

O arquivo era, portanto, fragmento de investigação maior — um dos nós da rede que continua a ser desfiado pelos investigadores federais nos meses posteriores à operação de agosto de 2025.

De acordo com a apuração, o arquivo pcc-9-upper-1.snapshot.1.zip era a materialização digital do que Janderson e Anderson afirmaram "de passagem" na abordagem: que as armas "eram montadas e vendidas para várias facções criminosas do país, sendo a maioria das vendas para a cidade do Rio de Janeiro".

O arquivo evidenciou que essa estrutura de venda não era episódica ou desorganizada. Era demanda sistemática, catalogada, organizada. Havia cliente específico (PCC), havia operador técnico específico (Clayton Ribeiro), havia repositório internacional de projetos, havia sequência operacional previsível.

Quando Mikhail Carvalho — "gerente operacional" nunca localizado — utilizava "telefone dos Estados Unidos para comunicação inicial, depois números brasileiros", era possivelmente para coordenar downloads de projetos internacionais antes de se conectar à estrutura operacional brasileira. Quando Vitória "operava com números da Região Sudeste", era possivelmente para gerenciar pagamentos a fornecedores internacionais e intermediários.

O arquivo pcc-9-upper-1.snapshot.1.zip não era simplesmente um modelo 3D. Era evidência de integração global de crime: repositório internacional, operador brasileiro, demanda faccionária nacional, distribuição em múltiplos estados. Era espinha dorsal de uma estrutura que dez dias de vigilância — dos federais Roberto e Gabriel — revelava apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo e muito mais preocupante.

Na investida dos federais, a fábrica de ghost guns em Santa Bárbara d'Oeste foi desmantelada . Mas as questões em aberto sugerem que a estrutura permanece operacional em outras localidades, alimentada por repositórios internacionais, coordenada por intermediários nunca localizados, distribuída através de redes faccionárias que transcendem fronteiras estaduais.

Dez dias de vigilância converteram-se em uma operação que apreendeu 31.145 componentes de armas . Mas a investigação federal segue em busca da estrutura maior — e a estrutura deixa rastros, exige manutenção, cria vulnerabilidades. Cada arquivo baixado, cada máquina programada, cada caixa transportada deixa marca. A questão agora é: como os investigadores desfiarão completamente esse novelo?