
Em 2025, completam-se dez anos da morte da mulher que, ainda criança, tornou-se um inesperado ícone da resistência ao se recusar a apertar a mão do general João Baptista Figueiredo, o último presidente da ditadura militar no Brasil.
O gesto, capturado em uma fotografia histórica em 05 de setembro de 1979, em Belo Horizonte, Minas Gerais, não foi um ato político deliberado, mas a birra da menina de cinco anos que queria dar um recado ao presidente, segundo afirma Rachel Clemens, a protagonista da imagem.
Rachel, faleceu em 11 de abril de 2015, aos 40 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória na mesma cidade onde, décadas antes, entrara para a história.
A verdade por trás da foto
O encontro entre a menina e o presidente ocorreu no Palácio da Liberdade, durante um evento para o lançamento do carro a álcool. O pai de Rachel, que trabalhava no Departamento de Estradas e Rodagens (DER), era um dos convidados para o almoço com a comitiva presidencial e levou a família.
Em entrevistas concedidas em 2011 aos jornais Globo e Estado de Minas, Rachel desmistificou a conotação política do seu ato. Ela contou que, na véspera, soube que seu pai almoçaria com o presidente e insistiu para que a mãe a levasse para vê-lo. Seu objetivo era avisar Figueiredo sobre o encontro com seu pai.

Ao chegar perto do general, em meio à insistência dos adultos para que o cumprimentasse, ela se irritou.
“ Virei pra ele: ‘você sabia que você vai almoçar com meu pai hoje’? Aí todo mundo ficava assim: ‘dá a mão pra ele, dá a mão pra ele’. Eu detestei. Detesto que me mandem fazer as coisas. Não dei a mão porque eu não queria dar a mão pra ele, eu queria dar um recado pra ele ”, relembrou.
Rachel afirmava não ter noção, na época, do que os militares representavam. “ Sou de uma época que criança era só criança e se preocupava mais em brincar e se divertir. Minha mãe estava danada comigo e queria que eu cumprimentasse o presidente, assim como todo mundo que estava por lá, mas acabei contrariando a todos porque era o meu jeito de menina ”, disse em uma das entrevistas.
Sobre o contexto da época, Rachel lembrou: “ Daquele período eu ficava sabendo que muita gente tinha medo da polícia, mas nem sabia o porquê .” Ela disse se orgulhar da foto pela carga simbólica que representou para muitas pessoas.
A fotografia foi obra de Guinaldo Nicolaevsky (1939-2008), um fotógrafo militante da oposição ao regime. Enquanto a maioria dos profissionais presentes evitou registrar o momento constrangedor para o presidente, Nicolaevsky seguiu seu instinto jornalístico.
Ele relatou que, ao perceber a conotação política da imagem, correu para a redação para enviá-la ao Rio de Janeiro, mas o jornal O Globo, para o qual trabalhava, se recusou a publicá-la, exigindo o rolo de filme intacto.
O fotógrafo, então, distribuiu a imagem para outros veículos por conta própria, o que garantiu sua publicação e repercussão, inclusive no exterior .
O regime chegou a investigar se a menina havia sido "infiltrada" para constranger o presidente.
Nicolaevsky faleceu sem conhecer a identidade da garota que imortalizou, apesar de ter realizado campanhas na internet para encontrá-la.
O governo Figueiredo
João Baptista Figueiredo assumiu a presidência em 1979, com a promessa de dar continuidade ao processo de abertura política iniciado por seu antecessor, Ernesto Geisel.
Seu governo foi marcado pela aprovação da Lei da Anistia, que permitiu o retorno de exilados, mas também perdoou os crimes cometidos por agentes do Estado. O bipartidarismo foi extinto, dando origem a novos partidos, como PDS, PMDB, PDT, PTB e PT.
No entanto, a transição foi turbulenta. Grupos de militares da " linha dura ", descontentes com a abertura, foram responsabilizados por uma série de atentados a bomba. O mais notório foi o do Riocentro, em 1981, quando uma bomba explodiu no carro de dois militares durante um show do Dia do Trabalho, matando um deles e ferindo o outro. A investigação oficial, amplamente contestada, gerou uma grave crise no governo.
Economicamente, o país enfrentava uma crise severa, com a dívida externa atingindo 61 bilhões de dólares, inflação alta e estagnação, quadro que ficou conhecido como " estagflação ".
O fim da ditadura e a campanha "Diretas Já"
A crise econômica e a crescente insatisfação popular fortaleceram a oposição. Em 1982, foram realizadas as primeiras eleições diretas para governadores desde o golpe, e os partidos de oposição conquistaram importantes vitórias.
A partir de 1983, o Brasil foi tomado pela campanha das " Diretas Já ", um movimento cívico que reuniu milhões de pessoas em comícios por todo o país, exigindo o direito de votar para presidente.
Apesar da mobilização popular, a emenda constitucional que restabeleceria as eleições diretas, proposta pelo deputado Dante de Oliveira, foi derrotada no Congresso Nacional em abril de 1984. A sucessão de Figueiredo foi, portanto, decidida de forma indireta, por um Colégio Eleitoral.
Em 15 de janeiro de 1985, a chapa de oposição, formada por Tancredo Neves e José Sarney, derrotou o candidato do regime, Paulo Maluf. A vitória marcou o fim de 21 anos de ditadura militar. Tancredo, no entanto, adoeceu e faleceu antes de tomar posse, e José Sarney assumiu a presidência, conduzindo o país à plena redemocratização.
O legado de Rachel Clemens
Longe dos holofotes, Rachel Clemens construiu uma carreira sólida. Formou-se em comércio exterior, fez pós-graduação no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e trabalhou em diversos países.
Um colega de trabalho a descreveu como " extremamente alegre, muito engajada com a amizade, com a família, companheirona ". Ela deixou uma filha, Clara.
Sua morte precoce, uma década atrás, marcou o adeus a mulher cuja imagem, capturada em um instante de birra infantil, permanece como um símbolo de busca pela democracia.