Exército reduz para menos da metade dinheiro para fiscalização de CACs

Corte de recursos ocorre em momento de descontrole sobre o arsenal

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Exército reduz para menos da metade dinheiro para fiscalização de CACs

Nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, o Exército reduziu para menos da metade o orçamento destinado à  fiscalização de acervos privados de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), lojas e clubes de tiros. Em meio à explosão do setor armamentista e de novos registros de armas, o órgão investiu quase R$ 1,7 milhão em visitas e operações para vistorias em 2021, 54% menos do que os R$ 3,6 milhões alocados para o mesmo fim em 2018.

O corte de recursos ocorre num momento de descontrole sobre o arsenal em circulação, segundo especialistas. Inquéritos policiais recentes revelam que cidadãos com perfil violento, mesmo com antecedentes criminais, têm obtido suas carteirinhas de CACs e conseguido manter seus arsenais em casa. A legislação brasileira proíbe que alguém que responde a processo criminal ou inquérito policial seja CAC.

Em 2021, o Exército fiscalizou 3,6% dos 499.135 locais que deveriam ser inspecionados, entre acervos privados de CACs, lojas e clubes de tiro. Embora com orçamento reduzido, o órgão informa ter quase sextuplicado o número de visitas a esses locais naquele período. Foram 3,2 mil inspeções, em 2018, e 18,4 mil, em 2021. O custo de uma visita passou de R$ 1.124 para cerca de R$ 90. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e analisados pelo Instituto Igarapé, a pedido do GLOBO.

Depois da flexibilização das leis de acesso, o número de brasileiros com Certificado de Registro saltou de 117 mil, em 2018, para 673 mil, neste ano, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mas não só. Nesse período, cresceram também novas armas em circulação e clubes e lojas de tiros. Outro aspecto preocupante é que o total de armas autorizadas para cada registro aumentou. Um caçador pode ter até 30 armas e um atirador esportivo, 60. E mais potentes que antes.

Para Melina Risso, diretora de pesquisa do Igarapé, ao aumentar significativamente os registros concedidos de CACs e novas armas e munições, o Exército prejudica a avaliação e o critério. Segundo ela, o órgão tampouco consegue garantir, ao longo do processo, o monitoramento adequado do acervo, com visitas para verificar se aquilo declarado no papel está ocorrendo, de fato, na prática.

"O Exército precisa nos contar, com transparência, qual é a mágica. Diante do aumento da inflação, do preço dos combustíveis, como se pode fiscalizar muito mais com metade do dinheiro?", questiona Melina. "Pelo volume de casos recentes de criminosos ou pessoas que não tem carreira criminosa, mas com histórico violento, que acessam arma de fogos, temos claramente uma fragilidade em todos os mecanismos de controle".

Brechas

Segundo especialistas, os criminosos têm se aproveitado das falhas do Exército na concessão e vistoria dos certificados para se armar de maneira legal. Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, ressalta que o órgão sempre teve essas fragilidades, mas, durante o atual governo, elas não só não foram corrigidas como se ampliaram.

"Houve perdas na qualidade de fiscalização e nas normativas para que esta força fizesse este trabalho, algo que está sendo agravado pela enxurrada de pedidos e acesso a armas e munições mais potentes e em maior quantidade", afirmou Langeani.

Um caso recente ocorreu em Uberlândia. O Ministério Público Federal de Minas Gerais pediu a prisão preventiva de Rodrigo Luiz Parreira pelos crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso. Segundo o MPF, o investigado mentiu para obter o registro de CAC, ao descrever na declaração de idoneidade que não respondia "a nenhum processo criminal". Ele comprou dois fuzis, um deles capaz de perfurar carros blindados, e uma pistola semiautomática.

Antes de obter o registro, Parreira havia sido condenado por estelionato e respondia a três processos por lesão corporal, organização criminosa e roubo. Para ludibriar o Exército, que exige o comprovante de antecedentes criminais para conceder o registro de CAC, ele tirou a certidão em outro município, onde não respondia por crimes. Depois de conseguir sua licença, ainda acumulou outros seis processos criminais. Langeani, do Sou da Paz, ressalta que o problema na etapa de expedição do certificado é que o "Exército não checa a autenticidade e veracidade das informações prestadas pelos postulantes, como antecedentes criminais, atestados psicológicos ou até mesmo comprovante de residência".

De acordo com sua defesa, Parreira tinha residências rural e urbana, além de um escritório, na cidade onde retirou sua certidão negativa criminal. "Os processos em desfavor de Rodrigo são da época em que residia em Uberlândia, exercendo outra atividade empresarial, e são de condutas sem violência ou grave ameaça", diz a nota. Ele foi preso no dia 2 de julho, mas deixou a prisão e vai responder ao crime em liberdade.

Banco inacessível

Outro caso recente mostra o descontrole sobre o arsenal, o de Adinei Anélio Rotta, que se apresenta como empresário do setor do agronegócio. Rotta já havia respondido a um processo por lesão corporal seguida de morte e a dois inquéritos policiais por violência doméstica, contra sua mãe e sua sua mulher.

Recentemente, virou réu após ser acusado de matar com golpes de canivete um jovem depois de uma discussão na fila do drive-thru de uma lanchonete de Cascavel, no Paraná. Segundo Alex Fadel, promotor de Justiça na cidade, a vítima não estava armada e Rotta não saiu machucado. Pelo contrário, "ele começou a agressão em dois momentos distintos".

Rotta tem registro de CAC e, registradas em seu nome, há pelo menos 42 armas - entre elas, 17 fuzis, seis espingardas calibre 12 e dez pistolas automáticas. Fadel afirma que, embora não seja esse o objeto do processo, o MP expediu um ofício ao Exército pedindo providências. A defesa de Rotta informa que ele foi absolvido do crime de lesão corporal seguida de morte e teve dois boletins de ocorrência por violência doméstica arquivados. Disse ainda que ele está respondendo ao processo por homicídio simples e que basta olhar as câmeras para concluir que agiu em legítima defesa.

Para Langeani, do Sou da Paz, o sistema "blindado" do Exército facilita o acesso a armas àqueles que, mesmo com o certificado em dia, não podem mais possuir exemplares por ter cometido um ato violento. Segundo ele, como as polícias não têm autorização para entrar no banco do Exército e consultar a situação de investigados, torna-se mais difícil pedir um cancelamento de registro ou apreensão de armas. O controle de armas no Brasil é feito pelo Sistema Nacional de Armas, vinculado à Polícia Federal, com acesso de todas as forças policiais; e Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, do Exército, que não permite a consulta.

"A comunicação entre bancos, de mão dupla, poderia permitir que o Exército checasse inquéritos em nomes de postulantes, e pudesse negar certificados. E também fazer com que fosse informado com mais regularidade sobre CACs que cometem crimes e precisam perder o registro, como determina a lei", explicou Langeani.

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