Ao menos uma em cada três armas de fogo de estoque particular que circulam hoje pelo país está com a documentação vencida e encontra-se, portanto, sem o devido controle do Estado, de acordo com o último relatório do Anuário da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta terça-feira (28).
Somando os mais recentes dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), gerido pela Polícia Federal, e do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), de responsabilidade do Exército Brasileiro, há registro atualmente de 4,4 milhões de armas distribuídas pelo Brasil para estoque particular, em poder de civis, colecionadores, caçadores, militares e servidores públicos. Deste total, 1,5 milhão encontra-se em situação de registro irregular: aproximadamente 35% do todo. Isso significa que são armas que a PF pode acabar não sabendo onde estão ou com quem estão.
Os dados sobre armas com registro expirado são todos referentes à base de dados do Sinarm, que é o sistema responsável, sobretudo, por cadastrar os armamentos sob poder da população em geral, o que para os pesquisadores só torna a situação ainda mais preocupante, já que, sem acompanhamento, elas podem acabar parando mais facilmente nas mãos de criminosos. O Exército não divulgou levantamento parecido no Sigma. Se comparados apenas os números de registros regulares e irregulares do Sinarm, atualizados até o fim do ano passado, os expirados são, inclusive, maioria: 51% do total – ou 58%, se ignoradas as armas regulares que não são de estoque particular, ou seja, que são cedidas institucionalmente a servidores.
Os estados com maior número de cadastros expirados de arma de fogo são Rio Grande do Sul (330 mil), São Paulo (265.058), Paraná (136.547), Minas Gerais (129.970) e Distrito Federal (97.417).
"É a primeira vez que nós pedimos esses dados à Polícia Federal e nós tomamos um susto quando nos deparamos com esses números", comenta Isabel Figueiredo, advogada e mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP, que faz parte da equipe técnica do Fórum. "Se estivéssemos falando de 200 mil armas, já seria um cenário muito grave. E se já temos como regra uma preocupação grande com as armas legalizadas, porque todas as pesquisas mostram que pelo menos 40% delas acabam migrando para o crime organizado, essas armas “fantasma”, então, causam ainda mais preocupação. É uma situação onde, em geral, o proprietário pode não estar nem aí para aquela arma, pode doar, vender, porque acha que ela não diz mais respeito a ele, e onde ela vai parar depois? O Estado não sabe."
Levando em consideração os dados de registros ativos do Sinarm – que contempla o cidadão em geral, além de caçador por subsistência, servidor público por prerrogativa da função, empresa de segurança privada, empresa comercial, revendedores, fabricantes ou importadores, entre outras categorias –, é possível notar que houve um aumento expressivo, de 133%, entre 2017 (637,9 mil) e 2021 (1,49 milhão), no número de armas com cadastro ativo no sistema. Para a pesquisadora, o cenário, potencializado pela política pró-armamentista do presidente Jair Bolsonaro (PL), ajuda a explicar uma certa sobrecarga na Polícia Federal que, entre todas as outras atribuições, fica imbuída de gerir o cadastro desses armamentos. Hoje, não há qualquer ação para buscar e regularizar as armas com cadastro expirado, por exemplo.
"Nós temos hoje uma piora na situação de descontrole de armas. Há muito mais armas hoje no país, sem que tenha sido ampliada a capacidade estatal para dar conta disso de alguma forma, com uma estrutura mais robusta, e também por conta de um discurso político a favor do descontrole."
No Sigma, do Exército, é possível observar também um crescimento expressivo no número de Certificados de Registro (CR) cedidos a Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs). Os 63 mil em 2017 foram aumentando ano a ano e hoje já são 673,8 mil até junho de 2022: quase 1.000% a mais.
No Sinarm, por sua vez, se houve registro de 94,4 mil novas armas em 2019, o número aumentou para 177,7 mil no ano seguinte e, em 2021, 202,5 mil novos armamentos foram cadastrados – um aumento de 114,5% no período.
Isabel, que foi diretora de Ensino e Pesquisa na Secretaria Nacional de Segurança Pública entre 2011 e 2015 acrescenta ainda que, mesmo no cotidiano das investigações, há pouca preocupação por parte das polícias em descobrir a origem das armas utilizadas nos mais diversos crimes. O caso Marielle, que demandou diligências mais aprofundadas e teve grande repercussão nacional, foi um dos raros exemplos.
"Há também o fato de que não há nas polícias brasileiras uma grande responsabilização pela arma, ou seja, quando observamos a investigação de um homicídio, vemos que as polícias se preocupam muito em descobrir qual arma matou a vítima, mas não se aprofundam em descobrir de onde aquela arma veio. No cotidiano das investigações não há um rastreamento das armas de fogo usadas nos crimes. E o Estado brasileiro ainda é detentor deste dado muito preocupante, de 1,5 milhão de armas que deveriam estar regularizadas e não estão. O que o Estado está fazendo em relação a isso? Nada.
Solução integrada
Como solução do problema, a pesquisadora cita ainda exemplos de países como Argentina, Peru e Guatemala, que optaram pelo modelo de uma agência civil para o controle de armas, munições, explosivos e produtos controlados. Sem as amarras trazidas pela relação paralela entre entidades autônomas, como é o caso do Brasil, com a Polícia Federal e o Exército, esses países conseguiram desenvolver políticas centralizadas que facilitam desde o processo de obtenção de licenças de posse e porte, importação, fiscalização fabril e vendas até a otimização de registros e desenvolvimento de sistemas de rastreamento.
Mas não se trata apenas de sobrecarga. Uma jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também contribui, na visão da especialista, para este cenário de descontrole das armas no país. O entendimento, pelo menos desde 2014, desqualifica o artigo 12 do Estatuto do Desarmamento, que prevê pena de 1 a 3 anos de detenção e multa para quem for flagrado com arma de fogo de uso permitido mas em desacordo com a determinação legal ou regulamentar.
"A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que o mero vencimento do registro é conduta atípica, pois não há dolo, caracterizando apenas infração administrativa que autoriza a apreensão do artefato e aplicação de multa. Na prática, não há regulamentação sobre essa possibilidade de apreensão e aplicação de multa, então isso não é feito", explica Isabel. "Se estivéssemos falando de um crime, a preocupação (por parte da polícia) seria maior."
O GLOBO questionou a Polícia Federal sobre os dados e, também, sobre o fato de não haver uma investigação, punição ou algum tipo de busca ativa pelos cadastros irregulares, mas até a publicação desta reportagem a instituição ainda não havia se manifestado.