Caso 'faraó dos bitcoins' gera bloqueio de R$ 7,2 milhões no exterior
Decisão tomada em processo no Paraná, que pode criar jurisprudência, exigiu que sete exchanges estrangeiras bloqueiem o valor investido por empresário
A busca por reparação de milhares de clientes da GAS Consultoria, empresa de Glaidson Acácio dos Santos, o "faraó dos bitcoins" , vem chacoalhando o sistema judiciário brasileiro. Nas últimas semanas, decisões no Paraná e em São Paulo determinaram, pela primeira vez, o arresto de criptomoedas pertencentes ao grupo em empresas no exterior. Também há pedidos do gênero no Rio, ainda sem desfechos favoráveis conhecidos. O bloqueio diretamente nas exchanges — como são chamadas as plataformas de compra e venda desse tipo de ativo — estrangeiras é visto por especialistas como uma medida pouco usual, que pode, inclusive, criar jurisprudência para outros processos que envolvam criptoativos armazenados fora do país.
Em uma única ação, o juiz Marcel Ferreira dos Santos, da 3ª Vara Cível de Maringá, no Paraná, ordenou o sequestro de R$ 7,2 milhões associados à GAS em sete exchanges. "Da análise dos autos, extraem-se indícios de robustas irregularidades na atividade prestada pelas rés, havendo destacadas evidências de que se trata, de fato, de 'pirâmide financeira', notadamente pelo alto valor dos contratos e pelos vultosos rendimentos prometidos", descreveu o magistrado na decisão. O processo é movido por um empresário seduzido pela oferta de lucro garantido de 10% ao mês, que o levou a fazer três aportes milionários entre dezembro de 2020 e abril do ano passado. Quatro meses depois, Glaidson foi preso no Rio pela Polícia Federal (PF), assim como outros comparsas, e os pagamentos mensais acabaram interrompidos em seguida.
"O primeiro caminho, em qualquer processo como esse, é o arresto cautelar. No início, para quem chega antes, isso pode funcionar. Depois, não mais. Quando bate zerado nas contas tradicionais, a gente apresenta à Justiça a alternativa seguinte, que é buscar as exchanges" detalha o advogado Artêmio Picanço, especialista no setor de criptoativos e defensor de cerca de 300 clientes da GAS Consultoria, entre eles o empresário do Paraná.
No dia 18 de fevereiro, as sete empresas estrangeiras foram oficiadas pelo juiz. Duas delas são sediadas nos Estados Unidos, a Bittrex e a Poloniex, enquanto as restantes — PrimeBit, BitFinex, BitMex, BitStamp e Binance, esta última considerada a maior bolsa de criptoativos do mundo, cujo dono é um chinês — estão registradas em paraísos fiscais no Caribe, na África e na Europa, como as Ilhas Virgens Britânicas e Luxemburgo. Algumas não possuem sequer representação no Brasil, e ainda não há, no processo, nenhuma resposta por parte das exchanges. Ainda assim, a expectativa é de que a medida gere frutos.
"É preciso de um tempo até que os trâmites burocráticos corram, até por se tratar de um tema tão novo, e também por serem empresas situadas no exterior. Mas existem vários tratados internacionais que versam sobre essas questões, com normas contra lavagem de dinheiro, por exemplo. Se você pegar o próprio termo de uso da Binance, está lá que eles são obrigados a cumprir ordens judiciais. Então, acreditamos que isso será feito" prevê Picanço.
O otimismo, porém, é visto com alguma ressalva por outras pessoas do meio. Embora arrestos em exchanges nacionais já sejam uma realidade relativamente consolidada, com bloqueios efetivados em diferentes tipos de ação, o acionamento de empresas no exterior, mesmo as mais estruturadas, ainda é rodeado por dúvidas.
"Se a exchange é brasileira ou está presente de algum modo no país, ela é obrigada a atender às ordens judiciais, não tem conversa. Mas, se não está, é como se ficasse a critério da própria empresa decidir se acata ou não, porque, na teoria, não há muito o que se fazer diante de uma negativa. E, sem avaliar nenhum caso específico, o que se ouve por aí é que existe uma resistência nesse sentido, que é difícil que cumpram esse tipo de exigência" pontua Bernardo Srur, diretor da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), entidade que tem como filiadas 11 empresas do ramo.
As dificuldades também passam por limitações da Justiça brasileira. O bloqueio de valores no ambiente bancário é feito através do Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (Sisbajud), criado para substituir a plataforma anterior em 2020, quando passou a ser possível realizar arrestos não só em contas-corrente, mas também em ativos mobiliários, como títulos de renda fixa e ações, entre outros tipos de investimento. O Sisbajud, contudo, não alcança as corretoras de criptomoedas, mesmo as nacionais. Assim, o bloqueio, nesses casos, não é feito de modo automático, sendo preciso oficiar diretamente as empresas, o que é naturalmente mais demorado.
"O problema é que, para estar no Sisbajud, você precisa estar também sob a égide do sistema financeiro nacional. Só que o mercado de criptoativos ainda não tem qualquer regulamentação, então é preciso buscar outros caminhos. Muitas vezes, inclusive, a própria ABCripto é oficiada, com um pedido para que a ordem seja destribuída entre os associados" explica Srur, acrescentando que casos como o do "faraó dos bitcoins" facilitam a criação de protocolos: "No início, havia muito desconhecimento. Ainda tem, mas, hoje, a jurisprudência está se criando com base em situações concretas."
Como tampouco possui mecanismos para armazenar criptoativos, o procedimento mais comum no Judiciário é determinar que os valores sejam convertidos em moeda corrente no momento do bloqueio. Foi o que aconteceu no processo que corre no Paraná. Ao oficiar as exchanges estrangeiras, o juiz Ferreira dos Santos escreveu: "Determino a vossa senhoria que proceda o arresto de criptomoeda, ou fração dela, de titularidade dos réus no montante de R$ 7,2 milhões". Em seguida, o magistrado acrescenta que os criptoativos "deverão ser antecipadamente liquidados", com "a quantia daí derivada depositada em conta bancária vinculada ao juízo".
A investigação da PF apontou que, mesmo após a deflagração da Operação Kryptos, que colocou Glaidson atrás das grades, o grupo seguiu movimentando recursos. Mulher do "faraó", a venezuelana Mirelis Yoseline Diaz Zerpa chegou a sacar, segundo as autoridades, mais de 4.330 bitcoins nos Estados Unidos, o equivalente a cerca de R$ 1 bilhão na cotação da época. Ela também teve a prisão decretada e se encontra foragida, supostamente em Miami, com o nome incluído na difusão vermelha da Interpol.
"Também sabemos que eles mantêm pelo menos 1.395 bitcoins que se encontram paralisados. São valores que poderiam ser usados para ressarcir clientes. Estamos falando de um caso bilionário, que movimentou cifras absurdas. Pode virar um divisor de águas, mas é imprescindível que o Poder Judiciário se atualize" diz o advogado Artêmio Picanço.
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