'Boiada' passa em projeto para instalar complexo termoelétrico no RJ
Com tecnologia inédita no país, navios-usina foram contratados pela Aneel para fornecimento de energia sob custo bilionário
O projeto de um complexo de usina termoelétrica na Baía de Sepetiba vem gerando críticas e preocupação entre ambientalistas e pescadores porque o licenciamento da primeira fase da obra foi concedido mesmo sem a realização de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima). A situação fere obrigações legais e até o próprio entendimento do corpo técnico do Inea, responsável pela autorização, que classificou o empreendimento, durante o processo de análise, como sendo de "impacto significativo" e de "potencial poluidor alto". Isso quer dizer, dentre outros fatores, que pode afetar a vida marinha, como as espécies dos botos-cinza, ameaçados de extinção, e os manguezais, que serão suprimidos.
O complexo fornecerá energia para a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), resultado de um leilão emergencial federal, promovido pela Aneel em outubro do ano passado, em decorrência da crise hídrica brasileira, e pode render cerca de R$3 bilhões por ano pela compra da energia.
Rejeitada na África do Sul por problemas ambientais
Fundada em 2010, na Turquia, a Kapowership baseia suas operações principalmente na Ásia e África, em países como Iraque, Gâmbia, Gana, Guiné Bissau, Senegal, Indonésia, Líbano e Moçambuique. Nas Américas, ela está presente apenas em Cuba . Sua operação consiste na produção de energia através de navios-usinas a gás, que são ligados por linhas de transmissão até, nesse caso, o Sistema Integrado Nacional. No ano passado, a Kapoership venceu um leilão semelhante na África do Sul, mas seu projeto foi rejeitado devido, justamente, às exigências ambientais.
Pelo projeto apresentado para a Baía de Sepetiba, a Kapowerhip instalará quatro navios desse tipo próximos à Ilha da Madeira, em Itaboraí, mais 14,7 quilômetros de linhas de transmissão e 36 torres, sendo 7 no espelho d'água. A capacidade de produção da usina será de 560 megawatts (MW), e o contrato prevê fornecimento de energia por 44 meses, o que pode render até R$3 bilhões de receitas anuais para a empresa.
Por ser um contrato federal, o Ibama deveria, originalmente, licenciar o empreendimento. Mas, no dia 22 de fevereiro, foi publicado a delegação do Ibama para que o Inea realizasse os devidos licenciamentos ambientais. No último dia 8, portanto apenas duas semanas após o convênio, a Kapowership conseguiu a Licença Ambiental Integrada (LAI) para a construção das linhas e torres de transmissão. Agora restaria o licenciamento dos navios-usina, pois a empresa decidiu segmentar o processo de licença.
A agilidade e a simplificação do licenciamento vêm chamando atenção de especialistas e até de técnicos do Inea. Por se tratar de um empreendimento de grande porte, o correto seria a exigência de um EIA-Rima, inclusive por questões legais. Segundo a legislação estadual, qualquer usina que tenha geração de energia acima de 10 MW já precisa apresentar EIA-Rima. A mesma obrigatoriedade está presente na resolução 1/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Ademais, a Lei da Mata Atlântica, também federal, cita as exigências para o caso de supressão de áreas de restinga, mata atlântica ou de mangue, que será o caso desse empreendimento.
'Desastre ecológico'
Ainda assim, o projeto — que foi decretado como "estratégico" pelo governador Claudio Castro, no final de dezembro, o que garante agilidade na sua tramitação, apesar de um decreto estadual de 2019 definir que apenas empreendimentos de "positivo impacto ambiental" poderiam ser classificados como estratégicos — foi licenciado sem a exigência de EIA-Rima. Ao Inea, a empresa alegou que, por ser uma tecnologia nova, não há legislação específica ou tradição de licenciamento para esse tipo de operação.
"É um desastre ecológico. São muitos fatores que justificariam, no mínimo, um estudo muito aprofundado" afirma Leonardo Flach, presidente do Instituto Boto Cinza, que acompanha a situação ambiental daquele ecossistema. A usina trará alterações na água, que impacta muito a vida marinha, podendo afetar peixes que fazem desova nas proximidades, e que são sustento dos pescadores, como robalo e tainha, além de suprimir o manguezal. Os botos cinza, por exemplo, que são uma espécie ameaçada de extinção, dependem de uma fauna equilibrada para sobreviverem, então também serão afetados.
Uma carta assinada por Flach em conjunto com o biólogo Mario Soares do Núcleo de Estudos em Manguezais da Faculdade de Oceanografia da Uerj e pela Coalizão Ciência e Sociedade, foi divulgada para denunciar o que eles chamaram de "boiada passando pelo Rio de Janeiro". Os especialistas citam que a "triste realidade da Baía de Guanabara não tem servido de exemplo" para as autoridades, e destacam a relevância ambiental e social da Baía de Sepetiba.
Corpo técnido admite "impacto significativo"
O entendimento de impacto ambiental é compartilhado não só por especialistas, mas pelo próprio corpo técnico do Inea. No dia 10 de fevereiro, um parecer do instituto juntado ao processo afirmou que " O empreendimento em tela é classificado sob o código 28.06.09 – CE032 (Operação de usina termelétrica para geração de energia elétrica), com potencial poluidor alto e porte excepcional, enquadrado, pois, na Classe 6C – Impacto Significativo". A classe 6c é justamente a categoria mais alta da tabela de impacto ambiental do Inea.
Por outro lado, o mesmo Inea concedeu a LAI, no dia 8 de março, mesmo sem exigir estudos aprofundados. No processo de documentação, ao qual O GLOBO teve acesso, consta como únicos dados ambientais enviados pela Kapowership um documento resumido, contratado junto à consultora PH Mar, onde está expressa a presença de botos-cinza na Baía de Sepetiba, e informações sobre a preocupação com ruídos sonoros em função do empreendimento.
"Um dos compartimentos o qual se observa uma grande preocupação é o da fauna, principalmente o boto-cinza, listado pelo Ministério do Meio Ambiente como espécie ameaçada e vulnerável na Lista da Fauna Brasileira de Espécies Ameaçadas de Extinção (Portaria MMA n.500 de 10/09/2019). A Baía de Sepetiba possui condições ideais para a sobrevivência da espécie, onde abriga a maior população já registrada ao longo de toda a sua distribuição, estimada em torno de 1000 indivíduos " diz o documento.
No LAI, o Inea anexou alguns condicionantes em relação ao manejo de fauna, mas que versam sobre medidas que os empreiteiros devem tomar caso haja morte de animais durante a obra, e não foi exigido um diagnóstico da situação atual. Já sobre a flora, a obra deve causar a supressão de cerca de 7 hectares de vegetação, por isso foi calculado uma necessidade de reposição de 15 hectares de floresta e oito hectares de mangue.
Como, por enquanto, a Kapoweship só recebeu licença para as linhas de transmissão, só está autorizada a construção das torres. A operação dos navios ainda depende de outra licença. Mas, como, pelo contrato, a empresa precisa começar a fornecer energia para o governo federal a partir do dia 1º de maio, técnicos do Inea denunciam que o processo está sendo atropelado, e eles temem que o novo licenciamento também seja concedido sem a exigência de EIA-Rima.
Presidente da Comissão de Meio Ambiente da Alerj, deputado estadual Gustavo Schmidt "ressaltou a importância do empreendimento para o Estado do Rio, e diz que a Comissão trabalha para garantir que tudo seja feito com a máxima transparência e respeito à Legislação Ambiental." Em dezembro do ano passado, ele enviou ofícios ao Inea, ao Ibama, ao MPF, à Seas e à PGJRJ solicitando que fosse exigido o EIA-Rima, além de solicitar uma audiência pública.
Na época, o Inea respondeu que ainda não havia analisado o projeto porque o caso era de prerrogativa do Ibama. Já a autarquia federal admitiu a competência federal no licenciamento mas disse que, ainda sim, faria a delegação para o Inea, o que foi concretizado em fevereiro.
Procurada, a Aneel respondeu que "recebe, mensalmente, informações sobre todos os aspectos relacionados com a consecução da obra, dentre os quais, o estágio de licenciamento ambiental", mas respondeu que essas questões devem ser respondidas pelo Inea e pelo Ibama.
Já o Inea informou que a licença emitida ainda está condicionada à emissão "Autorização de Supressão de Vegetação", o que ainda está sendo analisado pelo órgão, e que a obra "foi declarada como de utilidade pública, para fins de intervenção na vegetação".
Procurada, a Karpowership informou que "atende aos mais rigorosos requisitos ambientais brasileiros e internacionais", e que suas operações são certificadas por entidades internacionais. Segundo a empresa, os navios são projetados "exatamente para minimizar o impacto ambiental" e que o complexo na Baía de Sepetiba "têm impacto ambiental substancialmente menor do que a construção e operação de uma termelétrica em terra - alternativa tradicional e conhecida no Brasil", e que produzirá energia suficiente para atender a 3 milhões de residências.
Em relação ao processo de licenciamento, a Karpowership informou que "está atendendo a todos os procedimentos solicitados pelas autoridades em nível nacional e local", e que "está elaborando e fornecendo todos os estudos necessários e solicitados pelo órgão ambiental".
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