Rio: A cada quatro horas, uma pessoa negra é morta em ações policiais
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Rio: A cada quatro horas, uma pessoa negra é morta em ações policiais

Rio de Janeiro é o estado que mais mata negros em ações policiais. Os dados são do estudo "Pele alvo: a cor da violência policial", feito pela Rede de Observatórios da Segurança, que monitora os estados Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão. Este último, segundo o estudo, não acompanha a cor das vítimas da violência. A cada quatro horas, uma pessoa negra é morta em ações policiais, mostra o levantamento, divulgado nesta terça-feira, que utiliza dados obtidos de 2020, via Lei de Acesso à Informação.

Dos 1.092 registros de morte por agente do estado, 939 eram de pessoas pretas ou pardas, o que corresponde a 86%. Na capital, esse número é mais alto: 90% dos mortos em ações policiais são negros. O personal trainer Luciano Gonçalves, de 43 anos, conhece bem essa realidade. Há seis meses, ele perdeu a filha, a designer de interiores Kathlen de Oliveira Romeu, de 24 anos, alvejada no tórax durante um confronto entre policiais militares e bandidos no Lins de Vasconcelos, Zona Norte do Rio.

"A gente perde para a necropolítica de segurança tendenciosa, direcionada às pessoas pretas, pobres, de comunidade. É uma falta de cuidado, covardia, maneira desproporcional de agir na comunidade. Foi o racismo estrutural que levou a minha filha. A gente tem um manual de sobrevivência na periferia, principalmente para os negros: não pode correr, mesmo se estiver atrasado; em hipótese alguma, usar guarda-chuva longo e preto; não usar roupas escuras. Tem que provar o tempo todo que você é honesto. A sigla UPP para a gente é usurpação da paz do preto de bem", desabafou Luciano. "Minha família acabou. O tiro de fuzil que ceifou a vida da minha filha ceifou de toda minha família".

A pesquisa revela ainda que o Rio de Janeiro é o estado — entre os que são monitorados pela rede — com mais mortes em ações e intervenções das polícias. Ano passado, foram 1.245, o terceiro maior registro de toda a série histórica. Em agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a decisão liminar do ministro Edson Fachin, impedindo a realização de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia. Segundo o levantamento, houve uma redução de 31% das mortes em comparação ao ano de 2019. Para Pablo Nunes, doutor em Ciência Política, coordenador da Rede de Observatórios da Segurança e responsável pela pesquisa, a liminar foi decisiva para que não houvesse uma quebra de recorde no número de mortes:

"Quando olhamos os dados de letalidade policial mês a mês de 2020 e projetamos uma tendência baseada nos primeiros meses em que não havia medida de distanciamento em vigor, verificamos que muito possivelmente as polícias do Rio atingiriam a marca de duas mil mortes cometidas em 2020. A liminar do ministro Edson Fachin fez cair 70% o número de mortos do mês anterior à vigência para o mês que a liminar foi expedida. Em 2021, que tem a Chacina do Jacarezinho e o caso de São Gonçalo, ainda com dados de outubro, a gente já tem basicamente o mesmo número total de mortes de 2020".

Antes da decisão do STF, uma operação policial terminou com a morte de um adolescente de 14 anos em São Gonçalo, na Região Metropolitana. João Pedro Matos Pinto foi morto dia 18 de maio do ano passado, durante uma operação das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro. Ele foi atingido por um tiro no peito dentro da casa dos tios.

Em junho deste ano, três policiais civis foram indiciados pelo assassinato do menino. Os agentes Mauro José Gonçalves e Maxwell Gomes Pereira devem responder por homicídio culposo, quando não há a intenção de matar; e Fernando de Brito Meister, por tentativa de homicídio culposa, porque foi descartada a possibilidade de o agente ter atingido João Pedro, apesar de ele ter disparado na ocasião. Segundo a Polícia Civil, os policiais estão afastados do setor operacional, e se encontram em serviço no setor administrativo, na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), unidade de elite da corporação.

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São Gonçalo é a segunda cidade do estado e quarta do Brasil com mais mortes decorrentes de intervenção policial. Foram 199, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Um ano e sete meses após a morte de João Pedro, o motorista particular Neilton da Costa Pinto, de 42 anos, pai do menino, diz que a dor é diária:

"A polícia não entra na Zona Sul da mesma maneira como entra na comunidade. A bala que sai da arma da polícia só acerta negros e favelados. Para mim, isso é racismo. Entraram na casa do meu irmão e da minha cunhada achando que encontrariam bandidos. Acham que quem tem casa boa com piscina na comunidade tem envolvimento com tráfico. A dor não diminui. Só esquecemos quando fechamos os olhos e dormimos, mas, quando acordamos, vem tudo à tona".

Dos 1.245 casos informados de mortos pela polícia em 2020, 153 não têm informação de cor/raça. Ou seja, 12,3%. Nunes ressalta que há, além da falta desse dado, as mortes não informadas contribuem para a defasagem de dados.

"O número de 939 pessoas negras mortas pela polícia em 2020 possivelmente está defasado e subestimado. Isso por conta de pelo menos dois motivos. O primeiro deles são esses casos em que não foi cadastrada a raça/cor da pessoa vitimada. Certamente no contingente de 153 pessoas com a raça/cor não informada, a maioria deve ser de pessoas negras, mas, a gente não pode afirmar. A outra explicação que colabora com essa são as cifras que não vão para registro. Tem uma série de mortes cometidas por policiais que ficam num limbo de mortes a serem esclarecidas", explica o pesquisador.

Entre janeiro e outubro deste ano, foram 38 chacinas, 27 provocadas por agentes do Estado com 128 mortes registradas. Ou seja, 71% das chacinas no estado do Rio são de autoria de agentes do Estado, segundo a rede.

A Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que "estes dados refletem um quadro histórico lamentável de desigualdade social, no qual os afrodescendentes têm ocupado a maior parcela da população vulnerável e, consequentemente, mais propensa a ser cooptada pelo crime organizado". A corporação negou que haja "qualquer viés racial na atuação da Polícia Militar na sua missão de combater criminosos armados" e ressaltou que a PM "foi uma das primeiras instituições públicas do país a ser comandada por um negro e hoje mais da metade de seu efetivo de praças e oficiais é composto por afrodescendentes".

Já a Polícia Civil informou que "todas as mortes em confronto ocorridas na atual gestão da Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol), independente de raça, credo ou gênero, são em decorrência de agressões de criminosos contra policiais. A reação da Polícia Civil durante operações depende da conduta do criminoso, e não de sua raça".

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