Mais de 85 mil arquivos: volume de documentos desafia investigação da CPI
Comissão já recebeu 1,3 terabyte de dados e falta equipe para analisar informações
Em funcionamento há quase dois meses, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid já recebeu mais de 1,3 terabytes de documentos requisitados pelos senadores a órgãos públicos, empresas e outras instituições. Segundo o secretário da CPI, Leandro Cunha Bueno, que coordena a equipe administrativa da comissão, é o maior volume já obtido por uma investigação do Senado, considerando os dez anos em que ele atua na área.
O grande volume já criou problemas tecnológicos de processamento dos dados e alimenta dúvidas sobre a real capacidade de a CPI e o gabinete dos senadores analisarem todo o material recebido.
A informação total obtida até segunda-feira (21/6) se divide em 62.707 arquivos de acesso livre, que somam 896 gigabytes, e outros 24.052 arquivos sigilosos, com 423 gigabytes.
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O "volume absurdo de documentos", nas palavras do secretário da CPI, acabou sobrecarregando o sistema que armazena as informações sigilosas, atrasando o acesso a parte das informações obtidas. A dificuldade foi a inserção em documentos muito pesados da marca d'água digital de proteção do conteúdo (registros do login e do IP de acesso que servem para rastrear quem abriu os arquivos).
O problema foi resolvido pela assistência técnica do Senado após reclamação do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), um dos membros da CPI que solicitou grande volume de dados.
"Como comparação, a CPI das Fake News recebeu cinco gigabytes de dados sigilosos. É um volume (da CPI da Covid) muito superior ao que estávamos acostumados em outras comissões", nota Bueno.
"Talvez seja comparável ao da CPI dos Correios (realizada em 2005), mas antigamente era tudo em papel", acrescenta.
Os documentos obtidos pela investigação do Senado já produziram desgastes ao governo de Jair Bolsonaro em algumas frentes. A troca de dezenas de e-mails entre a farmacêutica americana Pfizer e o Ministério da Saúde ao longo de 2020, por exemplo, comprovou a demora do governo em negociar a compra de vacinas.
Já documentos enviados pelo governo do Amazonas à CPI mostraram que o governo federal foi avisado sobre a carência de oxigênio em 7 de janeiro, uma semana antes do colapso da falta do gás para atendimento dos pacientes com covid-19.
A revelação mais recente, noticiada pelo jornal O Estado de S. Paulo na terça-feira (22/06), mostra indícios de superfaturamento na aquisição da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde. Segundo a reportagem, a CPI obteve telegrama sigiloso enviado em agosto ao Itamaraty pela embaixada brasileira em Nova Délhi informando que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em 100 rúpias (US$ 1,34 a dose).
Em fevereiro, porém, o Ministério da Saúde pagou US$ 15 por unidade (R$ 80,70 na cotação da época), o que fez da Covaxin a mais cara das seis vacinas compradas até agora.
O arsenal da CPI, no entanto, continuará crescendo nas próximas semanas, com documentos já solicitados que ainda estão sendo enviados ou por meio de novas requisições dos senadores.
No momento, a comissão aguarda a quebra de sigilo fiscal, bancário e telemático de autoridades, como os ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores), e de empresários suspeitos de terem lucrado indevidamente com a venda de remédios sem eficácia contra covid-19.
As informações financeiras serão processadas em outro sistema, ao qual a CPI tem acesso por meio de convênio com o Ministério Público Federal, chamado Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias (Simba).
Volume 'inútil' de informação?
Nos bastidores do Senado, técnicos e senadores reconhecem que parte do material recebido provavelmente jamais será analisada por falta de braço suficiente.
A Secretaria da CPI tem no momento uma equipe de dez pessoas dedicadas à solicitação das informações requisitadas pelos senadores e ao gerenciamento do material recebido nos sistemas, além de outras tarefas administrativas, como formalizar a convocação de testemunhas, organizar reuniões da comissão e prestar informações ao Supremo Tribunal Federal quando há judicialização de questões da CPI.
Essa equipe, porém, não analisa os documentos. Isso é feito pelos gabinetes dos parlamentares, sendo o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), o único que tem um reforço para esse trabalho. Além de uma pessoa do seu gabinete, há o apoio de quatro consultores do Senado e o empréstimo de quatro servidores de outros órgãos (dois do Tribunal de Contas da União, um da Receita Federal e um da Polícia Federal).
Os demais gabinetes contam com sua própria equipe ou funcionários das lideranças partidárias.
Os senadores com maior número de requisições de informação são os oposicionistas Humberto Costa (PT-PE), que já apresentou 75 pedidos, e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), com 66.
Em termos de volume de dados solicitados, porém, os senadores vistos como governistas parecem liderar, já que esse grupo apresentou pedidos mais amplos, direcionados a todos os Estados e a dezenas de cidades. A Secretaria da CPI, porém, não soube informar o volume total obtido a partir dos pedidos de que cada parlamentar.
Alinhado com o Palácio do Planalto, esse grupo defende que a CPI precisa ir a fundo na investigação de possíveis desvios de verbas que a União transferiu a governos estaduais e municipais para o enfrentamento da pandemia. Esse é um dos objetivos formais da comissão, embora a maioria dos seus integrantes, composta por senadores oposicionistas e independentes do governo Bolsonaro, venham priorizando a apuração de eventuais falhas e ilegalidades da gestão federal.
"Pediram informações a municípios no país inteiro. A estratégia deles é criar fumaça, criar tumulto", crítica Humberto Costa, ao comentar os pedidos de senadores aliados do Planalto.
Um dos principais defensores de Bolsonaro no Congresso, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), por exemplo, requisitou informações de todos os municípios com mais de 200 mil habitantes (ou seja, 154 cidades), além dos 26 Estados e do Distrito Federal.
Diretamente a esses governos estaduais e municipais, ele pediu a cópia integral, em formato digitalizado, "1. de todas as notas de empenho (em PDF), 2. de todas as ordens bancárias (em PDF), 3. de todas as notas fiscais (em arquivo XML), 4. de todos os processos administrativos de despesa - independentemente de ter havido licitação ou dispensa ou inexigibilidade (em PDF) relativos à aplicação de TODOS os recursos federais destinados a cada um daqueles entes federados para o combate à COVID 19, incluindo, ainda: 4. os extratos bancários (em arquivo Excel) e 5. os documentos bancários de comprovação de todas os débitos e créditos ocorridos nas respectivas contas (em arquivo PDF)".
Além disso, solicitou às Policiais Civis e às Procuradorias de todos os Estados e do DF, à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal, e a Tribunais de Conta da União e de todos os Estados e de todos os Municípios com mais de 200 mil habitantes também as informações de todas as apurações abertas (processos, inquéritos, auditorias, inspeções) sobre recursos federais destinados aos governos estaduais e às prefeituras desses 154 municípios.
Procurado por meio da sua assessoria desde sexta-feira (19/06) para falar à reportagem sobre o grande volume de dados requisitado e o trabalho do seu gabinete para analisar esses documentos, Ciro Nogueira não retornou o pedido da BBC News Brasil.
O senador Eduardo Girão, por sua vez, fez algumas solicitações de dados aos governos de todos os Estados e de todas as prefeituras de capitais, como a evolução do número de leitos de UTI e de óbitos registrados nos últimos anos; dados sobre as compras de oxigênio, medicamentos e equipamentos médicos; e informações de contratos com instituições privadas sem fins lucrativos durante a pandemia.
Também pediu ao TCU cópia integral "de todos os processos abertos para apurar desvios de recursos federais repassados a Estados, Distrito Federal e Municípios em razão da pandemia da Covid 19", "do processo aberto para apurar supostas omissões do ex-ministro Eduardo Pazuello na gestão da pandemia da Covid" e "do relatório de auditoria produzido em razão de requerimento aprovado pela Comissão Técnica da Covid do Senado Federal". Apenas os dados não sigilosos enviados pelo TCU em resposta ao pedido de Girão somam 6,6 gigabytes.
À BBC News Brasil, o senador negou que seja governista. Se colocando como independente, ressaltou que tem solicitado tanto informações sobre os Estados e municípios como relativas ao governo Bolsonaro. Girão argumenta ainda que é preciso investigar a todos e que há uma "blindagem" da maioria da comissão à apuração de práticas de corrupção em governos estaduais e municipais.
Seu principal foco na CPI tem sido a compra de 300 respiradores pelo Consórcio Nordestes da empresa HempCare, no valor de R$ 48,7 milhões, que nunca foram entregues. O senador considera a operação suspeita, já que a empresa não é do ramo e teve os recursos liberados rapidamente. O Consórcio do Nordeste, por sua vez, se considera vítima de fraude e entrou na Justiça para reaver os recursos — o processo ainda está em andamento no Superior Tribunal de Justiça.
Girão disse à BBC News Brasil que os documentos que solicitou sobre a empresa confirmam que os recursos usados na compra eram verba repassada da União, o que justificaria a convocação do secretário-executivo do Consócio Nordeste, Carlos Eduardo Gabas. A proposta de convocação, porém, foi rejeitada pela maioria da CPI na semana passada. Na ocasião, o senador Humberto Costa rebateu Girão dizendo que os recursos usados na compra dos respiradores eram estaduais e, por isso, não podiam ser alvo da CPI.
A BBC News Brasil questionou Girão sobre que outras informações úteis teria obtido com os documentos recebidos até o momento, mas ele disse que ainda está analisando o material.
"O volume realmente é muito grande, mas nossa equipe tem se revezado na identificação e análise dessa documentação", contou.
"A gente ainda está depurando mais, solicitando mais informações. Eu não posso antecipar."