Sem patrulhas, PMs afirmam fazer apreensões para atingir pontuação cobrada
Agentes das UPPs das favelas descrevem que a atuação deles ficou limitada sem a realização dos patrulhamentos na região
Por Agência O Globo |
Tarde de 3 de setembro do ano passado, Rua Canitar, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro . Dois blindados da Polícia Militar e 18 policiais são acionados para resgatar dois colegas baleados. No confronto, os agentes fazem 936 disparos de fuzil para se proteger dos criminosos e cumprir a missão. A extensão do confronto daquela terça-feira mostra a atual situação na área, ocupada pelas forças de segurança em novembro de 2010.
Como o Globo mostrou no domingo (22), ao longo de uma década de ocupação o tráfico voltou a dominar os complexos do Alemão e da Penha. Sob a condição de anonimato, policiais militares das UPPs das favelas descrevem que a atuação deles ficou limitada. A orientação é evitar os confrontos. A maioria dos militares fica baseada, sem patrulhar.
"É como se houvesse um acordo: a gente não mexe com eles e eles não mexem com a gente. Mas, às vezes, os confrontos acontecem. A situação foi melhorando nos últimos anos conforme a polícia foi recuando e o tráfico, tomando territórios. A briga era por territórios", revela um PM.
Um dos PMs relata que, em determinadas ocasiões, é comum que o comando da UPP solicite “uma ocorrência", ou seja, que os policiais façam ações pontuais com o objetivo de apreender armas ou drogas apenas para contribuir com a pontuação almejada pelos oficiais.
Os policiais relatam ainda que, mesmo existindo o acordo velado, é comum que haja tiroteio no momento de troca de turno nas bases. Na Nova Brasília, no Complexo do Alemão , os ataques a tiros acontecem principalmente na base Alvorada. Em 20 de outubro deste ano, o tiroteio teve início às 8h e durou mais de uma hora.
A queda na produtividade policial espelha a falta de patrulhamento . No Alemão, nos últimos quatro anos, as apreensões de drogas caíram 95%, segundo números do Instituto de Segurança Pública (ISP). Já as prisões despencaram 86% no mesmo período. Na Penha, a queda de apreensões de drogas no mesmo período foi de 76% e de prisões, 82%.
O desenrolar da história do início do texto é dramático. Um dos feridos, o soldado Felipe Brasileiro Pinheiro, de 34 anos, conseguiu se recuperar. Entretanto, menos de três semanas depois, o policial acabou baleado novamente no Alemão numa operação para retirar uma base da UPP da comunidade e trocar outra de local. Desta vez, o militar foi ferido no peito e não resistiu.
‘Naquele momento, vi o projeto se desintegrar’
O temor de ataques do tráfico às bases das UPPs obrigou os policiais militares a colocarem a mão na massa. O Extra teve acesso a fotos de reforços construídos pelos próprios PMs na base do Alemão. Numa sala cujas janelas são de vidro, foi colocada uma chapa de aço para proteger os agentes de tiros. Já na entrada da base, do lado de fora da unidade, levantaram um muro de proteção. Em outras unidades, janelas e paredes quebradas mostram a falta de manutenção.
O coronel Frederico Caldas estava à frente do Comando de Polícia Pacificadora em 2014, quando foram mortos o subcomandante da UPP Vila Cruzeiro e o comandante da UPP Nova Brasília num intervalo de seis meses.
"Naquele momento, vi o projeto se desintegrar, se enfraquecer de forma quase irreversível. Eu já tinha um ano de comando na CPP e estava muito insatisfeito com a verdadeira canibalização que estava ocorrendo para inaugurar novas UPPs. Era frequente tirar viaturas e fuzis das que já existiam. E não havia investimento. Eu estava muito esgotado e irritado", afirma.
Caldas ficou no cargo de agosto de 2013 a dezembro de 2014. Ele afirma que o Alemão e Penha estavam entre os maiores desafios de sua gestão e ressalta que em razão da complexidade da situação nos dois complexos, o estado nunca teve controle total sobre ambos.
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Caldas relembra ainda que o fortalecimento do tráfico nos dois complexos foi gradual e afirma que as manifestações de 2013 também contribuíram para o enfraquecimento do projeto das UPPs.
"Ali, a Polícia Militar se mobilizou em torno das manifestações. Começaram a usar o efetivo das UPPs para ajudar e nós deixamos de poder contar com forças como Bope e Choque também. Ficamos muito vulneráveis. Os marginais perceberam aquele enfraquecimento. E a polícia não era alvo (das manfiestações), mas a repressão nos colocou no olho do furacão. Polícias passaram a ser alvo e os marginais perceberam esse momento", revela.
No comando do tráfico
Luciano Martiniano da Silva, o Pezão, é o chefe do tráfico no Complexo do Alemão. O criminoso é procurado desde a época da ocupação e continua foragido.
Seus principais comparsas são Delson Manoel Gonçalves e Fhillip da Silva Gregório, o Professor. Ambos são considerados foragidos. Fhillip foi reconhecido por policiais que bateram de frente com um bonde de criminosos da UPP Fazendinha na estrada Adhemar Bebiano no dia 4 deste mês. Segundo os PMs, Professor participou do intenso confronto.
O chefe do tráfico na Penha é Fabiano Atanázio da Silva, o FB. O criminoso conseguiu fugir durante a ocupação do conjunto de favelas, mas acabou capturado pouco mais de um ano depois pela Polícia Civil do Rio. Ele está preso até hoje no presídio de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná.
Na Penha, o homem forte de FB é Edgar Alves de Andrade, conhecido como Doca. No complexo, o criminoso abriga comparsas de outras favelas, algo semelhante ao que ocorria antes da ocupação, principalmente no Alemão.
Atualmente, na Penha, há inclusive criminosos que são do Estado da Bahia e buscaram abrigo no conjunto de favelas. De lá, eles comandam o tráfico e fazem negócios com Doca.
Fontes das polícias Civil e Militar e também do sistema prisional afirmam que, apesar do fortalecimento do tráfico no Alemão e Penha, ambas não tem a mesma importância para a facção criminosa que tinham antes da ocupação. Hoje, o principal quartel-general do tráfico no Rio é a favela da Rocinha.
Violência altera r otina dos moradores
A mãe não consegue levar e buscar os filhos na escola. O pai, que sai de casa às 6h, chega atrasado no trabalho mais um dia. A avó não vai à rua, com medo. O relato mostra como a rotina de moradores é alterada por conta da violência no Alemão e da Penha. Ali, a média de tiroteios no ano passado foi de um a cada 20 horas, segundo a plataforma Fogo Cruzado.
"Já fui demitida porque me atrasei por não poder sair de casa no horário do tiroteio no morro. Aqui, a nossa vida é ditada pela violência", lamenta.
Nem a pandemia impediu que o tráfico ditasse regras. "Foi fixado um rodízio de funcionamento. Nós podíamos abrir dia sim, dia não", diz um comerciante.