Carrefour pode ter de indenizar família de homem negro morto por seguranças
João Alberto Silveira Freitas foi espancado por dois seguranças brancos na saída de um supermercado da rede em Porto Alegre
Por Agência O Globo | | Agência O Globo - |
A morte de João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos que foi espancado por dois seguranças brancos na saída de um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre, pode ter implicações legais para a rede, além do dano à imagem da varejista, segundo especialistas.
O caso causou indignação e revolta nas redes sociais. Em meio a críticas à empresa, usuários lembraram outros casos recentes de violência cometidos por seguranças em unidades do Carrefour.
Para Alexys Lazarou, advogado criminalista do escritório Cascione, a rede não pode ser responsabilizada no âmbito penal pelo crime porque a lei brasileira só permite condenação de pessoas jurídicas por crimes ambientais. A família de Freitas pode, porém, processar tanto o Carrefour quanto a empresa terceirizada para a qual trabalhavam os seguranças que mataram a vítima.
— Seria um processo civil de indenização. Claramente, existe um dever de que o estabelecimento mantenha a integridade dos clientes, o que fica a cargo da empresa de segurança contratada. O supermercado e a terceirizada podem ser processados — afirma ele.
O advogado criminalista Fernando Castelo Branco afirma que a responsabilidade das empresas envolvidas no ato no âmbito civil independe da intenção de que a agressão fosse cometida.
— Neste caso, além da responsabilidade criminal das pessoas físicas envolvidas, existe responsabilidade civil das pessoas e empresas envolvidas no caso. Não importa se a pessoa jurídica pretendeu praticar ou ato ou não, ela assume a responsabilidade por ser a prestadora de um serviço, por disponibilizar um espaço de consumo para as pessoas — afirma.
Segundo Castelo Branco, a família da vítima pode recorrer ao Estado para processar a rede varejista e a empresa de segurança.
— Pode tanto ser um processo independente do criminal como pode ser uma ação civil depois que ocorrer a condenação do crime, quando a família pode ingressar com uma ação executória. Neste caso, já se tem o mérito da causa decidido, e o Judiciário analisa o quanto é devido de indenização — diz ele.
Lazarou afirma que os vídeos e depoimentos relacionados ao caso mostram que não se tratou de um ato de legítima defesa dos seguranças. Vídeos que circulam na internet mostram Freitas sendo agarrado pelas costas por um segurança e agredido por outro com diversos socos na cabeça.
A agressão teria ocorrido após Beto, como a vítima era conhecida, supostamente ter ameaçado uma funcionária enquanto passava as compras pelo caixa. No momento da agressão, a esposa dele ainda estava dentro da unidade terminando de pagar as compras.
Os seguranças estão presos e vão responder por homicídio por asfixia por dolo eventual. Um deles é policial militar temporário e estava fora do horário de serviço.
Crise de reputação
Para a consultora de comunicação, diversidade, e inclusão, Regina Augusto, a reincidência do Carrefour e de outras redes varejistas em casos de violência contra clientes negros mostra uma séria falha nas organizações.
— É muito comum a gente ver marcas de varejo nos assuntos mais comentados no Twitter devido a casos de violência racial. A reincidência evidencia uma falha muito séria na segurança terceirizada dessas empresas. O segurança que mata um jovem negro em uma rede de varejo mostra que o vê como uma ameaça — diz a consultora.
Para ela, embora o Carrefour diga que condena veementemente práticas racistas e violentas, a repetição de casos do tipo em lojas da rede mostra que faltam ações concretas no sentido de combater a discriminação.
— Não vejo nada que não seja cosmético em relação ao Carrefour nesse campo (de inclusão e combate ao racismo). A empresa precisaria urgentemente se associar a entidades e consultoria ligadas à equidade racial, precisam de um compromisso que vem da presidência, dos acionistas e do conselho, um movimento profundo e verdadeiro — afirma.
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A consultora cita como exemplo positivo o caso da rede de cafeterias Starbucks, que em 2018 fechou suas 8 mil unidades nos Estados Unidos para treinar 175 mil funcionários sobre como evitar discriminação racial.
A ação ocorreu depois que um funcionário de uma unidade da marca na Filadélfia ligou para a polícia após dois homens negros se recusarem a deixar a cafeteria quando lhes foi negado o uso do banheiro. Os homens chegaram a ser presos, o que foi visto como discriminação racial pelo público.
— É muito difícil o trabalho de reversão de imagem, mas é possível. A marca precisa rever completamente a estrutura de terceirização de segurança. Todas as notas oficiais desde o primeiro caso são iguais. Eles precisam fazer algo mais radical, como o que foi feito pela Starbucks — diz Regina.
Casos anteriores
O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, ocorrido na noite desta quinta-feira, não foi o primeiro caso de agressão ou descaso em unidades do Carrefour que repercute nas redes.
Em 2018, Luís Carlos Gomes foi agredido por seguranças em uma unidade do supermercado em São Bernardo do Campo porque havia tomado uma lata de cerveja dentro da loja.
Gomes, que é negro deficiente físico, teria afirmado que pagaria pelo produto, mas foi perseguido pelo gerente e agredido por seguranças. Na ocasião, ele acusou o Carrefour de racismo e pediu na Justiça indenização de R$ 200 mil.
“A empresa sente profundamente pela situação a qual nosso cliente foi submetido e informa que, logo após rigorosa apuração, os colaboradores envolvidos foram desligados. A rede repudia veementemente qualquer tipo de violência e reforça que, constantemente, realiza treinamentos e reorienta suas equipes, a partir da prática do respeito que exige dos seus colaboradores e prestadores de serviço”, afirmou o Carrefour à época.
Em agosto deste ano, o representante de vendas Moisés Santos morreu depois de passar mal enquanto trabalhava em uma unidade do Carrefour em Recife. Ele teve o corpo coberto com guarda-sóis e cercado por engradados de cerveja e caixas de papelão. A loja permaneceu aberta normalmente, o que gerou críticas à empresa.
Na ocasião, o Carrefour lamentou a morte de Santos e disse em nota que “os protocolos para que as lojas sejam fechadas quando fatalidades como essa aconteçam já foram alterados”.
Outro caso envolvendo má conduta de seguranças que atuavam em unidades da marca ocorreu em dezembro de 2018, quando um cachorro abandonado foi envenenado e espancado em uma unidade da rede em Osasco.
Depois disso, a marca assinou um termo de compromisso com o Ministério Público de São Paulo que previu o depósito de R$ 1 milhão em um fundo criado pelo município como reparação pela agressão.
Doação de lucros
O Grupo Carrefour chegou ao Brasil em 1975 e hoje tem 699 lojas em todos os estados do país. A companhia é controlada pela holding francesa e tem como principal acionista minoritário o fundo Península, do empresário Abílio Diniz. De janeiro a setembro deste ano, a companhia teve lucro de R$ 1,84 bilhão.
A empresa não quis dar entrevista à reportagem. Em nota, o Carrefour voltou a dizer que os funcionários envolvidos foram desligados e o contrato com a empresa de segurança foi rompido. O grupo disse ainda que " nenhum tipo de violência e intolerância é admissível, e não aceitamos que situações como estas aconteçam."
Segundoa a empresa, o ganho das lojas Carrefour no Brasil, nesta sexta, serão revertidos para projetos de combate ao racismo. As lojas também abriram duas horas mais tarde para reforço das normas da empresa junto aos funcionários e as terceirizadas.
" Essa quantia, obviamente, não reduz a perda irreparável de uma vida, mas é um esforço para ajudar a evitar que isso se repita", disse o Carrefour sobre a doação.