Preconceito no Xingu faz indígenas apelarem a doações de R$1

Covid-19 deixou sete óbitos e 77 casos confirmados no Parque Indígena do Xingu

Indígenas enfrentam dificuldades de atendimento nos hospitais.
Foto: Sandro Pereira/Fotoarena/Agência O Globo
Indígenas enfrentam dificuldades de atendimento nos hospitais.

SÃO PAULO — O avanço da pandemia do novo coronavírus em Mato Grosso tem levado povos indígenas do Xingu a lançar mão de todo tipo de alternativa no enfrentamento à doença. Algumas aldeias recorreram a iniciativas de financiamento coletivo a fim de tratar seus doentes. Uma delas, lançada pela Associação Yawalapiti Awapá, pede doações de R$ 1 para a construção de um hospital de campanha.

Além da falta de estrutura física, lideranças do Parque Indígena do Xingu relatam preconceito de hospitais urbanos com os indígenas. A escalada da doença lotou os leitos hospitalares em Mato Grosso.

— Por motivo de preconceito do pessoal do hospital que nós estamos pensando em montar o hospital de campanha. Eles não cuidam bem da gente. Quando a gente fica internado lá, não dão comida nem água para a gente beber — diz Yanama Kuikuro, uma liderança do Xingu.

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Compra de alimentos e remédios

Tapi Yawalapiti, filho do cacique Aritana e futuro líder do Alto Xingu, diz que as doações são muito importantes para que eles não precisem ir até a cidade para comprar mantimentos. Assim, podem ficar isolados nas aldeias e longe da contaminação pelo coronavírus.

— Não dá para viver dessa forma. A casinha que construímos (para isolar os doentes) não tem estrutura. O pessoal está ajudando com cinco reais, dez reais, e com esse dinheiro estamos comprando medicamento — afirma Tapi Yawalapiti.

A pandemia demorou a chegar no Xingu, mas agora avança rapidamente. O primeiro óbito foi de um bebê de 45 dias, Salu Kalapalo, em 13 de junho. De lá para cá, são sete mortes — a última ocorreu na manhã desta sexta-feira. As etnias kalapalo, com três óbitos, e yawalapiti, com duas, são as mais afetadas.

O Alto Xingu concentra os 77 casos confirmados de coronavírus de território. Não há doentes no Baixo Xingu.

Mas o medo persiste, principalmente porque o contágio entre os indígenas é mais alto que a taxa da população brasileira: 1.479 de cada 100 mil indígenas foram infectados, ante um índice de 907 na população brasileira. Os dados são do consórcio de veículos de imprensa formado por O GLOBO, Extra, G1, Folha de S.Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo.

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Considerando todos os indígenas do país, são 16.057 casos confirmados, 529 óbitos e 133 povos afetados. Os dados são do Instituto Socioambiental (ISA), com levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Isolamento monitorado

A situação não é pior porque projetos importantes continuam funcionando no Xingu. O principal é o Projeto Xingu, programa da extensão da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atuante no território desde 1965, o projeto é responsável por programas de vacinação nas aldeias e capacitação de agentes de saúde locais, em colaboração com autoridades públicas.

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Agora o programa está na linha de frente do combate ao coronavírus, com a produção de materiais informativos sobre a doença, elaboração de cursos a distância, apoio com telessaúde e articulação com outras organizações.

— A pandemia mudou nosso trabalho radicalmente. Interrompemos todas as nossas ações de campo e focamos no coronavírus. A gente conseguiu aproximar os parceiros e criar um grupo de trabalho interinstitucional. Essa parceria ajudou a organizar as informações, ações e recursos captados — diz Sofia Mendonça, médica sanitarista e coordenadora do Projeto Xingu.

O grupo envolve o ISA, a Unifesp, a Funai (Fundação Nacional do Índio), o DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) e associações indígenas como a Atix (Associação Terra Indígena do Xingu). Um comitê de crise se reúne diariamente às 18h para debater ações sanitárias .

A situação do Alto Xingu mobilizou outros projetos atuantes na região. Cientistas brasileiros e estrangeiros do Amazon Hope Collective (AHC) e do People's Palace Projects realocaram as verbas de pesquisas feitas na região para o combate à pandemia.

Alguns trabalhos foram suspensos, mas outros puderam ser adaptados. O antropólogo Bruno Moraes, vinculado à AHC, transformou o sistema de mapeamento de sítios arqueológicos que usava para pesquisa num sistema de monitoramento da situação do coronavírus nas aldeias.

O sistema permite identificar e rastrear, por meio dos celulares dos indígenas, a movimentação no território. Com os dados, a equipe médica consegue aperfeiçoar o isolamento de moradores que estiveram em contato com possíveis contaminados e, assim, frear a disseminação do vírus. O método é conhecido como contact tracing.

— É uma pena (ter que realocar verba de pesquisa para fins sanitários), porque não é a nossa função. Mas não tem problema. Não existe cientista descompromissado com o meio com o qual ele trabalha. A gente tem que advogar pelos povos indígenas. Precisamos fazer o que for possível — diz Moraes.