Homenagens na Câmara Municipal do Rio de Janeiro na forma de moções são uma parte corriqueira das atividades legislativas. Membros da sociedade civil carioca, instituições, organizações, estabelecimentos comerciais — milhares de nomes já foram contemplados no plenário do Palácio Pedro Ernesto.
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Contudo, uma dessas moções se destacou no final do mês passado. Requerida pelo vereador Leonel Brizola Neto ( PSOL ), o texto apresentado à mesa da Câmara prestava homenagem ao governo da República Popular Democrática da Coreia, a Coreia do Norte , e ao seu líder, Kim Jong-un .
"Por todo esforço de seu povo e de seu Máximo Dirigente, Excelentíssimo Senhor Kim Jong-un, na luta pela reunificação da Coreia e a necessária busca da paz mundial", diz a Moção de Louvor e Reconhecimento, datada do dia 29 de novembro. Uma homenagem semelhante foi feita ao embaixador do país em Brasília, Kim Chol-hok .
Naquele mesmo dia, as moções foram entregues ao embaixador durante reunião entre o vereador Leonel Brizola e parte do corpo diplomático norte-coreano. O ato foi organizado pelo Centro de Estudos da Política Songun do Brasil, que promove eventos e seminários relacionados ao regime, como sobre a Ideia Juche , filosofia que rege o governo, ou a política Songun , que diz respeito à prioridade das Forças Armadas. Em publicação no Facebook, no dia 30 de novembro, o Centro afirmou que as conversas giraram em torno do intercâmbio cultural e econômico.
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A homenagem foi registrada no dia 10 de dezembro em despacho na KCNA , a agência estatal de notícias da Coreia do Norte e considerada a voz do regime. Segundo a nota, "o Líder Supremo, Kim Jong Un, recebeu o certificado 'Moção de Louvor e Reconhecimento' da Assembleia (sic) da Cidade do Rio de Janeiro ", reiterando que o certificado é "concedido a pessoas que prestaram serviços distintos no Brasil".
A KCNA afirma que a homenagem se deu por conta de "sua contribuição à reunificação independente da Coreia, à paz e segurança no mundo e a seus feitos para esmagar as sanções hostis impostas por forças violentas para abalar a Coreia do Norte, além de fornecer felicidade ao povo".
Meses antes, no dia 21 de fevereiro, foi realizado na Câmara Municipal do Rio um seminário sobre as "Relações Norte-Sul na Península da Coreia e a Perspectiva de Reunificação", organizado também pelo Centro de Estudos, com participação do vereador Leonel Brizola e do embaixador Kim Chol-hok.
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O Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a Coreia do Norte em março de 2001, com a embaixada norte-coreana inaugurada em Brasília em 2005 e a brasileira em Pyongyang em 2009. De acordo com dados de comércio exterior do Ministério da Economia, as trocas entre os dois países somaram US$ 19,74 milhões de janeiro a novembro, sendo que praticamente todo esse valor (US$ 19,64 milhões) se refere a exportações brasileiras, principalmente de celulose, produtos derivados da soja e milho. As importações, de US$ 139 mil , incluem peças para automóveis e aquecedores.
Denúncias de violações
A Coreia do Norte é considerada uma das ditaduras mais repressoras do planeta, comandada por um regime passado de pai para filho e baseado em uma ideologia conhecida como Juche , que prega a autossuficiência como caminho para a soberania nacional.
De acordo com a Anistia Internacional, as autoridades são responsáveis por graves violações dos direitos humanos, incluindo a detenção de até 120 mil pessoas em prisões políticas, sujeitas a tortura, condições desumanas e execuções sumárias . Muitos ali não cometeram crimes — estão detidos por terem relações com pessoas consideradas "nocivas" pelo Estado.
As acusações, corroboradas pela ONU , também apontam restrições à liberdade de movimento, inclusive entre cidades, e de expressão — o país aparece na posição 179 no ranking de Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras , formado por 180 países. Além disso, a Coreia do Norte continua a desenvolver armas nucleares — estimativas apontam que o país teria entre 20 e 30 ogivas prontas para uso — além de mísseis balísticos , mesmo vetado pelo Conselho de Segurança da ONU e sob pesadas sanções internacionais.
As conversas sobre a desnuclearização do país estão paralisadas desde fevereiro, quando fracassou uma reunião bilateral entre Kim Jong-un e o presidente americano, Donald Trump.
"A Coreia do Norte é uma ditadura feroz, um dos regimes mais fechados do planeta, tem uma história terrível em termos de catástrofes criadas por esse sistema político, em particular a grande fome dos anos 1990, é muito estranho que haja qualquer homenagem a esse governo no Brasil", afirma o professor de Relações Internacionais da Universidade Do Estado do Rio de Janeiro, Maurício Santoro . — É lamentável esse tipo de homenagem, ela contribui para uma banalização desses regimes violentos, autoritários e uma desvalorização dos direitos humanos, que já enfrentam uma situação grave no Brasil.
De acordo com o gabinete do vereador Leonel Brizola, a moção concedida ao embaixador norte-coreano "foi motivada pelas conversas de paz estabelecidas na península (coreana) ao longo do ano de 2019".
"A unificação e desnuclearização da região é de interesse global. Não faz bem para o mundo isolar e descriminar a RPDC, pelo contrário, com base na autodeterminação dos povos, é vital que tenhamos boas relações com Pyongyang e que possamos usar o histórico de paz e concórdia que o Brasil acumulou através dos tempos para contribuir nesse processo de pacificação", diz o comunicado enviado à reportagem.