Em processo de favelização, terra indígena de SP resiste com liderança jovem
Da menor área demarcada do Brasil, indígenas do Jaraguá falam sobre os conflitos por espaço e o do temor pelo discurso do governo Bolsonaro
A menor reserva indígena demarcada do Brasil tem também lideranças muito jovens. A relação entre as duas informações se explica pelo contexto: na Terra Indígena do Jaraguá , Zona Oeste de São Paulo, seis aldeias dentro da megalópole se adaptam às novas políticas e buscam renovação e engajamento dos mais novos, que aliam educação formal ao respeito pelos costumes indígenas na defesa do seu território.
Há poucos meses, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “durante seu mandato, não haverá demarcação de terra indígena”. A declaração foi recebida com temor pela população indígena em geral, mas muito especialmente pelos Guarani M’byá da TI Jaraguá, que dizem viver diariamente a luta por espaço no elevado paulista, onde vivem cada vez mais apertados, sem espaço para plantio e moradia em comunidades que se assemelham cada vez mais às favelas de São Paulo.
Os conflitos por espaço são inevitáveis. O maior deles ocorreu em 2017 quando do cancelamento da portaria do Ministério da Justiça que previa a ampliação do espaço de 3 hectare para 532 hectares - área reconhecida pela Funai e publicada em 2013 no Diario Oficial da União (DOU). O argumento do ministério, na época, foi tratar-se de um "erro administrativo". A área de 3 hectare foi mantida e os índios ainda articulam pressões na justiça e nas ruas pela ampliação.
De acordo com a Funai, há registros de presença dos Guarani na região desde o século 17. O dado endossa a relação sociocultural, afetiva e religiosa da etnia com o lugar que, segundo os moradores, por ora possui uma área disponível ainda menor do que o tamanho homologado pelo Ministério: 1,7 hectare, que concorda com a demarcação de 1986 seria insuficiente para o modo de vida Guarani.
“Nossa luta não começou hoje. Não começou ontem. Mas desde o início do atual governo estamos mais assustados. Sentimos que corremos risco”, afirma Jaxuka Poty, que desde os seus 24 anos é cacique da aldeia Tekoa Pyau - onde vivem aproximadamente 120 famílias.
Para ela, os discursos do presidente de Jair Bolsonaro também incentivam a violência contra etnias indígenas, em especial as lideranças, como o assassinato recente do líder Paulo Paulino Guajajara, no Maranhão, e da cacique Emyra Wajãpi, no Amapá, ambos ocorridos no último trimestre.
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No Brasil ainda existem 43 militantes indígenas ameaçados de morte e incluídos no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH). “Nesse cenário, a participação dos mais novos é fundamental, porque renova nossas forças”, explica Jaxuka, que diz ter como prioridade a conscientização dos jovens sobre a luta indígena e promove encontros sobre o assunto na aldeia. “A gente precisa seguir o exemplo dos nossos guias espirituais, que nos trouxeram tantas conquistas no passado, e seguir pensando no nosso futuro porque nada é definitivo”.
Aos 19 anos, Wera Mirim Popygua, ou Michel, em português, é um exemplo visível desse movimento. Cacique na aldeia Tekoa Itakupe, o representante é o mais novo da família a assumir o cargo. “Meu avô foi o responsável pela retomada dessas terras em que estamos agora. Depois dele, minha mãe foi grande matriarca e meu irmão também já liderou até o ano passado”, explica.
Há cerca de dez meses, o rapaz que nem sempre prefere ser chamado de cacique tornou-se responsável por ouvir as demandas da comunidade: coletivas ou pedidos de orientações familiares, por exemplo. Sua missão é também pensar soluções junto aos conselheiros e aos próprios moradores. “Estou aqui para ajudar e me sinto grato”, diz.
Educação formal é caminho para autonomia
Ao lado de Michel, também na aldeia Itakupe, está Daniel Wera, que ocupa o cargo de conselheiro de português. Criado fora da aldeia, ele ajuda no idioma quando necessário, especialmente em contratos e documentos que utilizam uma linguagem tecnicista, que podem conter armadilhas jurídicas. “Os povos originários são muito sábios, aprendem muito na prática, mas às vezes a falta de conhecimento acadêmico é uma fragilidade”, explica.
A aldeia vizinha, sob liderança de Jaxuka, segue a mesma premissa e reforça que a educação formal é hoje um dos caminhos mais importantes para a conquista dos direitos. “Não só aqui mas em todas as aldeias do Brasil, nossos jovens estão mais preparados para entender as nossas conquistas e o que acontece com elas”.
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Enquanto na escola convencional os alunos recebem o mesmo ensino fundamental e médio dos demais jovens brasileiros, no contra-turno, a maioria comparece ao Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI) , onde o calendário escolar possui uma organização específica e considera os ciclos da natureza e ensinamentos ancestrais além da alfabetização em Guarani. “O conhecimento ideal é aquele que não elimina a nossa cultura. Que ajuda os jovens a lutar por ela”, diz Jaxuka, que destaca a importância das unidades.
No CECI, há funcionários e professores Guarani, que precisam da autorização do cacique ou do conselho comunitário para atuar no centro, após uma capacitação aplicada por empresa parceira da Prefeitura. Também é garantida a presença de sábios e sábias da aldeia, que ensinam sobre conhecimentos tradicionais da comunidade. Os salários variam entre R$ 4.330 (diretora) e R$ 1.320 (manupulador de alimentos). Para o cargo de educador indígena, é pago o valor de R$1.425.
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, o centro requer um repasse mensal de R$ 100.828,02 para atender 130 crianças com idades entre 0 e 6 anos, que fazem parte da alfabetização, além dos 210 alunos mais velhos e mães acompanhantes.
Além do Pico do Jaraguá, os Centros - mantidas pela prefeitura de São Paulo - estão presentes nos territórios indígenas das etnias Tenodé Porã e Krukutu. Já no estado, existem outras 12 diretorias que trabalham com a Educação Escolar Indígena em núcleos especiais de ensino.
Indígenas enxergam perspectiva de futuro ameaçada
E se a demarcação de terras surge como prioridade quando o assunto é a luta por direitos das comunidades indígenas, o motivo é unanimidade entre aqueles que se envolvem diretamente com o assunto: “Nós queremos garantir nosso futuro”, explica a cacique Jaxuka. “O que eu faço, faço pensando em todas as crianças da aldeia”, diz.
Compartilhando a mesma ideia, o conselheiro Wera Mirim Poty, da aldeia Itakupe, diz que a falta de perspectiva sobre os próximos anos interfere diretamente no cotidiano e bem estar da sua etnia. “Os índices de suicídio entre jovens indígenas é o mais alto do país. Entre outros motivos, nossos planos são ameaçados. Nós nunca sabemos se teremos terra para nossos filhos amanhã”.
Segundo ele, “a parte mais difícil de viver sempre sob tensão é que nós precisamos dormir sem saber se vamos acordar com a aldeia em chamas. Isso faz mal para o índio. Faz mal para qualquer pessoa”.
Pai de Taemily, de apenas um mês, o cacique Michel também fala sobre futuro e reforça que, apesar de eventuais ameaças, o povo Guarani M’byá não se deixa intimidar por elas. “Todas as famílias da aldeia são como se fossem uma só. Nossa história é nessa terra e não pretendemos sair”, diz, referindo-se, claramente, a um núcleo muito maior do que aquele formado por sua esposa e filha.
Rituais de fé e conexão com a natureza ainda são prioridade
Apesar dos momentos de burocracia política, a resistência entre os indígenas - de todas as etnias - não exclui o essencial: a ancestralidade de sua cultura, que busca a preservação e conexão com a natureza e coloca os rituais religiosos a frente da maioria dos hábitos.
“A natureza é nossa maior fonte de energia e força. Tudo que fazemos, fazemos alinhados com ela”, explica o conselheiro Daniel Wera, cuja busca religiosa foi responsável para integração na aldeia Itakupe. Com profundo respeito pelo solo onde o plantio ainda é tímido devido ao passado de pecuária, ele explica sobre os ciclos sagrados da terra e a importância que ela ocupa na vida dos índios.
“Todas as tardes nós rezamos aqui. Nós agradecemos as bênçãos de Nhanderú e pedimos orientação sobre o futuro”, explica ele, referindo-se a um dos deuses Guarani . “É Nhanderú quem nos guia. Quando nos preparamos para um protesto na cidade, quando ocupamos uma prefeitura, nós usamos roupas de guerreiro e lanças de batalha, mas nunca a violência. Nossa postura é firme e paciente, porque é assim a resistência do índio. Nós temos fé e confiança”, diz.