Ranielli Bartholo ao lado do filho João Guilherme.
Arquivo pessoal
Ranielli Bartholo ao lado do filho João Guilherme. "Nossa história é um milagre", contou.


“Disseram que meu filho e eu íamos morrer. Sobrevivi, mas só encontrei meu filho pela primeira vez após 20 dias, porque fiquei em coma”. Por conta de um diagnóstico errado na gestação que confundiu pré-eclâmpsia com pedra nos rins, Ranielli Bartholo, com então 29 anos, teve cegueira temporária, falência múltipla dos rins, água nos pulmões e perdeu o útero. A criança, batizada como João Guilherme Bartholo Nikolaus, nasceu em uma cirurgia de emergência na 33ª semana.

Por conta do sofrimento da mãe, o bebê teve uma parada cardíaca. Os médicos conseguiram reanimá-lo após 18 minutos. Com isso, Guilherme perdeu parte da audição e precisou usar aparelho auditivo desde os 8 meses de idade. A mãe estava em um estado avançado de HELLP - hemólise, enzimas hepáticas elevadas, baixa contagem de plaquetas, atrelada a um quadro de hipertensão na gravidez. A demora para o diagnóstico fez com que ela e o bebê corressem risco de morte antes, durante e depois do parto. Hoje, João Guilherme segue utilizando o aparelho auditivo e Ranielli conseguiu se recuperar totalmente sem hemodiálise ou tratamentos alternativos. "Milagre", comenta a profissional de Recursos Humanos que deu à luz em 2016.

Casos como o de Ranielli, que aconteceu há três anos, continuam figurando nos dados sobre mortalidade materna e infantil da capital paulista, que aumentou em comparação a 2018. O Mapa da Desigualdade, divulgado nesta terça-feira (5) pela Rede Nossa São Paulo , mostra que houve um crescimento de 15% em um ano no número de óbitos femininos por causas maternas e de 8% de crianças menores de um ano. O distrito da Liberdade, localizado na área central de São Paulo, é onde as mulheres morreram mais em decorrência do parto. Em contraponto, o distrito de Alto de Pinheiros está entre os que não tem um registro sequer. Em relação à mortalidade infantil, o bairro de Marsilac, situado na região sul do município, é o que apresenta o maior índice. No polo oposto está o bairro de Perdizes, situado na Zona Oeste, em uma área nobre.  

A coordenadora da pesquisa, Carolina Guimarães, explica que o tema da mortalidade infantil está relacionado a muitos fatores. Variáveis como a idade e escolaridade das mães, além do próprio acesso à saúde, devem ser olhados em conjunto para analisar o cenário. Carolina aponta que o índice de pré-natal insuficiente reflete qualidade de vida dos bebês em Marsilac, com impactos significativos nas mortes infantis.

“Esse mapa mostra a complexidade que é abordar a desigualdade socioterritorial, principalmente porque existem muitos fatores que resultam nas diferenças, não sendo possível isolar apenas uma causa para morte infantil. As mães de Perdizes têm maior qualidade de vida porque os índices de pré-natal insuficiente, de gravidez na adolescência e de áreas de pré-natal insuficiente são menores. Isso cria mais propensão para que os filhos das mulheres de Marsilac tenham menos qualidade de vida que os de Perdizes”, explica. 

São Paulo também apresenta disparidades geográficas relacionadas à mortalidade materna, período que vai desde o pré-natal até o 42º dia após a gestação. O bairro com maior índice é a Liberdade, que não figura negativamente em outros quadros da pesquisa.

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“Tem dados que são bastante específicos. Usamos números oriundos da Secretaria de Saúde, que incluem o serviço público e privado de saúde. A mortalidade materna em um distrito que não é conhecido por ser precário ou humilde tem a ver com o cálculo que cruza o número de habitantes, número de nascidos vivos e mortes maternas. Em números absolutos, a Liberdade tem apenas quatro mortes para um universo de 100 nascimentos”, contextualiza. 

A Secretaria de Saúde da Prefeitura de São Paulo se recusou a explicar as razões que levam o bairro da Liberdade a ser o que as mulheres correm mais risco de vida na gestação em comparação ao Alto de Pinheiros e afirmou “desconhecer a metodologia da pesquisa”.

Causas do problema

A diretora da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP), Rossana Pulcineli, explica que a morte materna está ligada a três principais causas: hemorragia, hipertensão e infecção.

"Quando a gente fala de hemorragia, essa pode estar associada às altas taxas de cesariana, que geram acretismo placentário, doença desenvolvida com a prática de cesarianas sucessivas que faz com que o útero seja invadido pela placenta”.

A doutora comenta ainda que um ponto importante a ser tratado sobre São Paulo enquanto Estado é um número excessivo de maternidades com um número reduzido de profissionais. “Equipes incompletas diminuem a segurança. Para você criar uma maternidade, tem que ter uma equipe com ao menos dois obstetras, um anestesista, um pediatra e uma equipe de enfermagem. Seria possível fazer entre 500 a 700 partos por ano. Mas a maior parte das pequenas maternidades não chegam a 500 atendimentos por falta de estrutura”, criticou.

Falta de informação

Os rins e fígado da servidora pública Juliana Azevedo, de 39 anos, estavam parando sem ela perceber durante a gestação. A descoberta aconteceu durante uma cardiotocografia, que afere a frequência cardíaca fetal e das contrações uterinas. Ela estava em um estado avançado da HELLP no segundo dia da 38ª semana de gravidez. A servidora conta que teve alguns indícios, como dor de cabeça e um incômodo no estômago, mas a falta de informação não lhe permitiu cogitar que pudesse ser algo relacionado à uma condição de pressão arterial elevada associada ao aumento de proteína na urina.

“Eu achava que era azia”, conta. No mesmo dia do diagnóstico, Juliana foi internada para dar a luz porque a bebê e ela corriam risco de vida. "Na hora chorei muito, porque não queria cesárea. Passei a tomar remédios para hipertensão a cada 8 horas. O médico me orientou a não ter mais filhos e me explicou que é bem provável eu ter a pré-eclâmpsia novamente. Então meu marido fez vasectomia, porque eu não posso operar devido aos riscos hemorrágicos", relembra. O parto bem-sucedido foi realizado em 23 de abril de 2019, em uma maternidade localizada no distrito de Itaim Bibi, zona nobre de São Paulo. 

Revertendo o quadro

A doutora Rossana Pulcineli, diretora da SOGESP,  explica que o primeiro ponto para reduzir o número de mortes maternas e infantis é manter uma rede de proteção em função da gestante. "Qualquer pessoa que presenciar uma gestante se queixando de dor de cabeça, edema ou sintomas de hipertensão deve levá-la com urgência ao hospital. Cada pessoa deve se responsabilizar por não deixar uma gestante morrer, mesmo em localidades mais carentes". 

O aumento de leitos maternos é outro ponto citado pela especialista. "O que as pessoas muitas vezes pensam é que o leito só é necessário na hora do parto. Mas gestações de alto risco, como as que ocorrem nas hipertensas e que contraíram infecção, precisam de leitos obstétricos para que fiquem o tempo correto do tratamento bem assistidas na maternidade". 

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