O vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) apresentou, no fim de maio, o Projeto de Lei 352, que “ cria medidas de apoio à mulher gestante e à preservação da vida na rede municipal de saúde ”. O projeto, no entanto, vem sendo criticado por profissionais que acreditam que ele fere os direitos das mulheres.
Em seu Twitter, Fernando Holiday ironizou: "Embora o projeto ainda esteja no início da tramitação, organizações feministas já estão agindo contra a proposta de preservação da vida. É um bom sinal".
O vereador traz uma série de propostas que criam obstáculos à realização do aborto legal. Se o PL for aprovado, as mulheres que desejarem realizar o procedimento em São Paulo deverão conseguir um alvará judicial. Este, por sua vez, será apresentado à Procuradoria Geral do Município, que terá o direito de recorrer e tentar impedir a realização do abortamento.
Se a gestante conseguir a autorização para o procedimento, ela ainda terá que ser submetida a uma consulta psicológica na qual, segundo Holiday, o profissional tentará dissuadi-la. Ela também será obrigada a ouvir indícios de sinais vitais do feto e passar por um atendimento religioso, sempre que a mulher ou seus familiares demonstrarem teísmo.
A advogada Maíra Recchia, da Rede de Juristas Feministas, avalia que, de modo geral, “o projeto é um desserviço”. “Trata-se de uma terrível tentativa de institucionalizar a violência já tão sofrida diariamente pelas mulheres. E as vidas destas mulheres, quem protege?”, questiona.
A psicóloga Daniela Pedroso, do Conselho Regional de Psicologia e do Grupo de Estudos sobre Aborto, define a proposta de Holiday como um retrocesso. A defensora pública Paula Sant’Anna, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo, destaca a internação compulsória como um dos pontos mais críticos do projeto.
Além dos empecilhos ao aborto legal já citados, o PL também prevê a possibilidade de internação psiquiátrica caso as “condições sociais e psicológicas da gestante indiquem propensão ao abortamento ilegal”. Para a defensora pública, o artigo é “extremamente abrangente”. “A gente compreende que as leis devem ser sempre criadas de modo a não ter interpretações abertas”, diz.
Sobre isso, Holiday comentou, mais uma vez no Twitter, que a internação só valerá para "mulheres dependentes químicas ou com doenças mentais que, por conta disso, resolvam abortar".
Para a psicóloga Daniela, o ponto que mais exige atenção é o que atribui ao psicólogo a função de dissuadir a mulher a não realizar o abortamento. “Isso fere o nosso código de ética profissional. A gente apoia a mulher na decisão que ela tomar. Não é nosso trabalho influenciar ninguém a fazer ou não fazer”, diz.
A ética e o sigilo profissional foram lembrados por todas as profissionais consultadas pela reportagem. Elas destacam que o médico ou psicólogo não podem expor o que for conversado com a paciente durante o atendimento.
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Questão de tempo
Todas as profissionais também ressaltam o tempo como um fator crucial para a realização do aborto legal . Segundo elas, com os obstáculos impostos pelo projeto de Holiday, a mulher pode não conseguir acessar esse direito.
“Criar um empecilho de judicializar a questão, a gente entende que pode inclusive tornar inefetivo esse direito, o que também seria uma violação aos direitos das mulheres”, defende Paula.
Daniela destaca os efeitos que tal demora podem causar nas pessoas. “O dano psíquico até ela realizar o procedimento pode ser intensificado. Você aumenta o risco dessa mulher atentar contra a própria vida ou de procurar um aborto inseguro. Essas mulheres vão melhorar muito psicologicamente após o procedimento”, explica.
Questões legais
Uma das principais críticas ao projeto é sobre seu escopo de atuação. Tanto a advogada quanto a defensora acreditam que o PL é inconstitucional. “Qualquer mudança legislativa, no nosso entender, teria que acontecer no âmbito da União. Não pode um projeto municipal modificar esse direito das mulheres”.
Segundo explica que “o Município não tem legitimidade para legislar sobre questões penais e civis, cuja legitimidade é exclusiva da União, conforme artigo 22 da Constituição Federal”.
“Expor a mulher a situações completamente traumatizantes para demovê-la da ideia de realizar o aborto atenta contra a dignidade da pessoa humana e denota franca violação dos Direitos Humanos e de Pactos Internacionais do quais o Brasil inclusive é signatário”, lembra Maíra Recchia.
O aborto legal no Brasil
Atualmente, o aborto é permitido em três situações. Quando a gravidez é fruto de um estupro, quando o feto é anencéfalo e quando a gestação representa grave risco à vida da mãe. Em nenhuma delas é necessário mostrar nenhum tipo de comprovação ou documento para ter acesso ao procedimento.
De acordo com o previso em lei, qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar aborto legal. Uma pesquisa da ONG Artigo 19, no entanto, mostrou que de 176 hospitais públicos em todo o Brasil, apenas 43% realizam o procedimento.
“A gente já tem esse obstáculo na prática. Imagina então se a gente começa a criar leis que restrinjam ainda mais essa prática”, comenta Paula.
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As críticas ao projeto ecoaram na internet ao longo da última semana. Frente a isso, segundo o jornal O Estado de São Paulo , o Fernando Holiday pretende alterar o PL retirando algumas das exigências para a realização do aborto legal. A reportagem entrou em contato com a assessoria do vereador, mas não obteve resposta.