Há pouco mais de duas semana, a paisagista Elaine Caparroz foi agredida ao longo de quatro horas por Vinícius Serra, um homem com quem ela havia marcado um encontro amoroso. A delegada do caso, Adriana Belém, da 16ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro, foi enfática em determinar que tratava-se de uma tentativa de feminicídio.
Pela brutalidade, o caso ganhou grande atenção da mídia, mas ele está longe de ser um fato novo ou incomum. O Brasil figura entre os países que apresentam os piores índices de feminicídio do mundo. Uma mulher é assassinada a cada duas horas no país, que é o quinto no ranking dos com mais homicídios de mulheres. À frente estão apenas El Salvador, Colômbia, Guatemala, e Rússia, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
De acordo com dados do Fórum Brasileira de Segurança Pública, uma mulher é assassinada a cada duas horas no País.
Em 2019, já são 332 vítimas, sendo que ao menos 187 assassinatos foram consumados e 130 mulheres foram alvo de tentativas, de acordo com levantamento informal realizado pelo advogado e doutor em direito internacional pela USP Jefferson Nascimento.
A lei do feminicídio foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT) no dia 9 de março de 2015 e define um novo tipo penal, segundo o qual o fato de um homicídio ter sido cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” faz dele um crime hediondo, com pena de 12 a 30 anos de prisão.
A criação de uma lei específica no Brasil seguiu recomendações de organizações internacionais como a Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW) e o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ambos da ONU. Além disso, a tipificação deste crime era uma reivindicação de movimentos de mulheres.
Nos quatro anos em que esteve em vigor, os casos vêm aumentando. O crescimento, no entanto, é esperado, uma vez que não necessariamente representa um aumento na quantidade de mortes de mulheres em função de seu gênero, mas sim uma conscientização acerca do que é o assassinato com viés de gênero e maior número de crimes enquadrados neste tipo penal.
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Apesar do aumento, especialistas ainda suspeitam que casos de feminicídio podem acabar sendo enquadrados em tipos criminais diferentes. Elaini Silva, jurista e professora da PUC-SP, lembrou o caso de Mayara Amaral, violinista de Campo Grande que, apesar de ter sido morta em uma situação com todos os indícios de feminicídio, teve o caso registrado como latrocínio pelo delegado responsável pelo caso.
Firmiane Venâncio, defensora pública do Estado da Bahia e doutoranda pelo Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), concorda. “Muitas vezes, chega na unidade de saúde, mas isso não é notificado para os serviços de segurança pública. Às vezes, a mulher nem diz o que aconteceu ou não quer denunciar o agressor.”
Todas as entrevistadas concordam que a lei não é suficiente para prevenir o assassinato de mulheres. “Na época em que a lei entrou em vigor, eu mencionei por várias vezes que eu não via com muito otimismo uma redução do número de feminicídios em razão de a gente dar um nome para um crime de homicídio com essa rubrica”, afirma a doutora em Direitos Humanos pela USP Maíra Zapater, professora de Direito Penal e Processo Penal. “Em termos penais, não faz tanta diferença, até porque quando a gente aplica a lei de feminicídio é porque uma mulher morreu”, completa.
Elaini afirma que trata-se de um passo necessário, mas não suficiente para o combate à violência contra a mulher. “O feminicídio é apenas a forma mais aguda entre tantas manifestações da violência contra a mulher que se dão tanto de forma direta (pessoal) quanto estrutural (decorrente das regras de organização da sociedade)”. “Por ser apenas uma proteção negativa e não tratar de maneira global das causas do problema, a violência contra a mulher deve continuar um problema da nossa sociedade”, completa.
As especialistas defendem que é necessária uma ação em rede, com criação de políticas públicas de acolhimento da mulher que é vítima de violência doméstica e educação de gênero para conscientização acerca da questão, o que está previsto na Lei Maria da Penha .
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Da mesma forma, está na conscientização a maior vantagem da lei. É consenso entre especialistas e ativistas que a principal vantagem da lei do feminicídio é a maior visibilização deste problema que passou a acontecer desde 2015.
Para Firmiane, “nada é mais importante do que nomear os fenômenos sociais e a lei foi muito importante para dar visibilidade a esse fenômeno”. “A partir da identificação desse fenômeno ele ganha um nome e, mais do que isso, ele ganha uma linha de investigação, uma linha de atuação para as instituições do sistema de Justiça”, explica. “Isso nos dá uma noção do tamanho do fenômeno e de como poder evitá-lo."
Maíra faz coro: “Ela é importante nesse sentido de trazer a ideia de que você tem que dar o nome, e dar o nome é importante porque quando você tem um registro adequado na delegacia, você consegue levantar dados de como esse crime acontece e pensar em políticas públicas para evitar a sua ocorrência.”
A professora destaca também o fato de, quase concomitantemente a aprovação da lei, o Brasil ter adotado o protocolo “Diretrizes nacionais feminicídio: Investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres”, elaborado pela ONU Mulheres . O protocolo fornece indicações de como devem se dar as investigações deste tipo de crime, por exemplo.
Leis de feminicídio no mundo
Em dezembro de 2018, a Comissão Interamericana de Mulheres da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma lei modelo de feminicídio que vinha sendo desenvolvida há dois anos. O objetivo era ser uma ferramenta para criar ou atualizar a legislação na região e contribuir para a erradicação dos assassinatos de mulheres por motivos de gênero, assim como fortalecer as ações de prevenção, proteção, atenção, investigação e reparação integral, garantindo o direito das mulheres a uma vida livre.
Em consonância com o que afirmam as especialistas brasileiras, a OEA acredita que a solução da punição não é suficiente para atacar este problema e é preciso desenvolver mecanismos que previnam a morte violenta de mulheres.
Segundo Luz Patricia Mejía, Secretária Técnica do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI) da OEA, que participou da elaboração da lei modelo, “os principais obstáculos [para a efetividade das leis de feminicídio] são a inexistência de medidas integrais para enfrentar o fenômeno.”
A lei modelo diz também que os Estados devem desenvolver políticas públicas de prevenção, proteção, investigação e reparação para as famílias das vítimas e para as sobreviventes.
No mundo, 87 mil mulheres foram assassinadas intencionalmente em 2017, de acordo com a ONU. Destas, mais de 50 mil foram mortas por seus parceiros, ex-parceiros ou algum membro de sua família, o que pode indicar feminicídio. Segundo estes dados, 137 mulheres morreram por dia no mundo.
Na região, 18 dos mais de 30 países da América Latina e Caribe já possuem uma legislação que tipifica o feminicídio.
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A Argentina foi o primeiro país da América Latina a promulgar uma lei específica para mulheres que são assassinadas devido à condição de mulher, em dezembro de 2002. Lá, a pena para quem comete feminicídio também é a mais severa e pode chegar à prisão perpétua. Na Bolívia, o homem que comete este tipo de assassinato não tem direito a recorrer de sua sentença.