Gaza: como ficam as vidas de reféns e prisioneiros libertados?

Após cessar-fogo, pessoas que ficaram em cativeiro agora enfrentam um longo caminho de reabilitação; veja na reportagem de Matthew Ward Agius

Momento da libertação do refém Arbel Yehoud, solto como parte de uma troca de reféns por prisioneiros entre Israel e o Hamas em janeiro de 2025
Foto: Matthew Ward Agius
Momento da libertação do refém Arbel Yehoud, solto como parte de uma troca de reféns por prisioneiros entre Israel e o Hamas em janeiro de 2025

Matthew Ward Agius

Ao menos 20 reféns israelenses mantidos pelo Hamas e mais de 1.950 prisioneiros e detidos palestinos sob custódia de Israel foram libertados e voltaram a seus territórios de origem. A troca foi feita no último acordo de cessar-fogo, anunciado na última semana.

Apesar da liberdade , o processo de reabilitação pode ser longo e complexo. Cada pessoa vivencia esse retorno de forma única — e não tem como prever como vai ser a recuperação de cada um.

"Na medicina de reabilitação, não falamos em cura, mas em cuidado” , afirma Avi Ohry, médico com mais de 50 anos de experiência em saúde pública em Israel e no mundo.

Dignidade e empatia: primeiros passos

Segundo Ohry, o primeiro passo essencial é restaurar a dignidade e oferecer empatia. Ele próprio foi prisioneiro de guerra durante o conflito de Yom Kippur, em 1973.

"Empatia é a chave”, disse à DW. "Tomar banho, comer algo, beber água, reencontrar os entes queridos.”

Cuidados médicos e psicológicos imediatos também são cruciais neste primeiro momento.

Ao longo dos dois anos do conflito entre Israel e o Hamas, observadores internacionais e especialistas em direitos humanos da ONU afirmaram que reféns israelenses foram submetidos a tortura e abuso sexual durante o cativeiro e que prisioneiros e detidos palestinos sofreram tortura, violência sexual e de gênero em instalações israelenses.

Ohry destaca que profissionais de saúde — tanto israelenses quanto palestinos — precisam agora entender como era a vida de cada pessoa antes do cativeiro e o que enfrentaram durante o período de detenção. "Quanto sofreram, quanto foram interrogados e torturados. Do que foram privados: comida, água, tudo.”

Alguns podem estar desnutridos e precisar de acompanhamento nutricional cuidadoso para evitar a chamada síndrome da realimentação. Ela ocorre quando a pessoa volta a se alimentar muito rapidamente e o metabolismo muda de forma brusca, podendo causar sintomas respiratórios, arritmias e falência cardíaca.

Apoio psicológico e escuta sensível

Além dos cuidados físicos, o suporte psicológico é indispensável, com escuta e acolhimento sensíveis.

"Eles precisam falar sobre o que viveram. E também é preciso reacender a esperança em seus corações e mentes" , afirma Khadar Rasras, diretor-geral e psicólogo clínico do Centro de Tratamento e Reabilitação na Cisjordânia ocupada.

Para a ONG britânica Hostage International, que atua em defesa de pessoas que foram feitas reféns, o tratamento psicológico das vítimas deve ser conduzido por especialistas em trauma. Até as lesões físicas podem dificultar a recuperação.

O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é uma das consequências mais graves que podem surgir. Mas essa e outras condições se manifestam de formas diferentes para cada um. Nem todos os sobreviventes desenvolvem o transtorno — e os sintomas podem aparecer imediatamente ou até décadas depois.

"O ideal é um programa feito sob medida para cada pessoa", diz Ohry. "Após o exame médico no hospital, o acompanhamento pode continuar em casa, com entrevistas empáticas e um processo lento de reconstrução."

"Nem todos os prisioneiros de guerra desenvolvem TEPT. Pelo menos um terço pode apresentar sintomas em qualquer fase da vida.”

Reconstruindo o papel na sociedade

Além do cuidado individual, o apoio da comunidade é essencial. Ohry e Rasras destacam a importância da participação das famílias e das comunidades israelenses e palestinas no processo de reintegração social. Em casa, isso significa reconstruir o papel do sobrevivente na vida familiar, por exemplo.

"Quando a pessoa consegue se relacionar com quem está ao redor, nós também tentamos ajudá-la a encontrar uma carreira ou trabalho que possa exercer para viver uma vida digna", explica Rasras.

No caso dos palestinos que retornam à Faixa de Gaza, o desafio é ainda maior. Com o sistema de saúde local devastado pela guerra, Rasras afirma que é altamente improvável que as organizações locais na Cisjordânia consigam aceitar, quanto mais tratar, prisioneiros libertados que necessitem de ajuda psicológica. Uma alternativa que poderia aliviar a demanda, segundo ele, são as linhas telefônicas de apoio.

Nesse contexto, o papel das famílias e comunidades se torna ainda mais crucial, tanto em Israel quanto nos territórios palestinos.

"Nas fases posteriores da reabilitação, ocupação, moradia, círculo social, estudos, educação — tudo isso deve ser conquistado com o apoio do entorno: do Estado, do país, da comunidade”, afirma Ohry.

E mesmo quando o sobrevivente parece ter retomado seu lugar social, em casa e na comunidade, o cuidado contínuo é essencial. Isso porque o risco de o trauma ressurgir ainda se mantém.

"Algumas pessoas respondem bem à terapia. Para outras, o processo é mais demorado”, diz o psicólogo clínico.

Ambos os especialistas ouvidos pela DW enfatizaram a necessidade de um suporte financeiro a longo prazo para os libertados. Em Israel, isso significa manter uma rede de proteção duradoura. No caso dos territórios palestinos, Rasras defende que o apoio internacional será indispensável.

"Vai custar caro. Por isso é importante que a comunidade internacional apoie os centros que atuam nessa área”, conclui Rasras.