Mujica celebra como 'prêmio de despedida' volta da esquerda ao poder no Uruguai

"Estou farto dos jornalistas. Mas a culpa não é de vocês", diz José "Pepe" Mujica ao abrir a porta de sua modesta casa, para muitos um verdadeiro "santuário" no final de uma...

O ex-presidente do Uruguai José 'Pepe' Mujica (2010-15) em  entrevista à AFP em 28 de novembro de 2024 em sua casa nos arredores de Montevidéu
Foto: EITAN ABRAMOVICH
O ex-presidente do Uruguai José 'Pepe' Mujica (2010-15) em entrevista à AFP em 28 de novembro de 2024 em sua casa nos arredores de Montevidéu
Eitan ABRAMOVICH

"Estou farto dos jornalistas. Mas a culpa não é de vocês", diz José "Pepe" Mujica ao abrir a porta de sua modesta casa, para muitos um verdadeiro "santuário" no final de uma estrada de terra nos arredores de Montevidéu.

Ele talvez seja o uruguaio mais famoso do mundo, mas isso não o incomoda. “Não sou um fenômeno, sou um cara comum com algumas excentricidades (...) um esquisito”, disse o ex-presidente de 89 anos em uma entrevista à AFP, que travou mil batalhas e obteve uma enorme vitória: a de seu apadrinhado político Yamandú Orsi nas eleições presidenciais de domingo, que permitiram que a esquerda voltasse ao poder nesse país de 3,4 milhões de habitantes.

Em plena recuperação de um câncer no esôfago, que o deixou à beira da morte, essa vitória tem “um sabor agradável de prêmio de despedida”, confessa o ex-guerrilheiro que governou o Uruguai entre 2010 e 2015 com um discurso anticonsumismo e de sobriedade que deixou uma marca indelével a nível internacional.

Altamente crítico em relação a alguns líderes esquerdistas autoritários da América Latina que querem se perpetuar no poder, Mujica garante que não ocupará “nenhum cargo” na próxima administração da Frente Ampla (FA).

Ele fala sem pressa, sentado em uma sala quase escura, onde o tempo parece ter parado. Suas pantufas gastas e meias velhas de lã chamam a atenção. Atrás dele, na biblioteca, estão empilhados livros, lembranças de viagens, uma estatueta do Papa Francisco e uma foto de Fidel Castro. Na cozinha, ao lado dele, está sua esposa e companheira de vida, Lucía Topolansky.

Pergunta: Como o senhor se sentiu com a vitória da Frente Ampla?

Resposta: Você está falando com um veterano de quase 90 anos, que passou por muitos choques, então a vitória me deu um sentimento de gratidão, uma alegria, e tem algo de prêmio para mim, um pouco como um prêmio no final da minha carreira (...). Tem um sabor agradável, um pouco como um prêmio de despedida (...) Não vou mais ocupar nenhum cargo.

P: A que o senhor atribui sua liderança?

R: “No princípio era o Verbo”, diz a Bíblia. A palavra é uma arma formidável, se for bem usada e se, além da racionalidade, for até as áreas emocionais dos seres humanos. E a natureza me deu, talvez, parte desse dom (...). O dom da palavra. E talvez eu tenha sido capaz de aperfeiçoá-lo.

P: O Uruguai é uma ilha em um mundo de polarização. Você teme que isso aconteça em algum momento?

R: Em geral, as coisas não acontecem por acaso. O que o (presidente Javier) Milei fez na Argentina é uma loucura. É uma lição sobre o que a hiperinflação pode fazer com um povo. Uma nova lição histórica. Porque a República de Weimar entrou em colapso e as pessoas votaram em Hitler por causa da hiperinflação. E a Alemanha era o país mais culto, e o povo alemão, em desespero, fez uma coisa bárbara. O povo argentino também fez algo bárbaro (...). As pessoas também cometem erros. Se isso aconteceu com eles, pode acontecer conosco também.

P: Não está na hora de redefinir a esquerda na América Latina, onde também há presidentes como Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua?

R: Eles não são esquerdistas, são autoritários. Coloquei Cuba um pouco de fora porque é outra coisa, porque há 70 anos ela disse “abraçamos a ditadura do proletariado, um partido único” e, bem, é uma teoria da qual se pode discordar muito.

P: Você foi guerrilheiro, senador, ministro, presidente, o que está faltando?

R: Sempre há coisas faltando. Este é um país pequeno, mas tem muitos recursos para produzir alimentos. De fato, produzimos alimentos para 30 milhões de pessoas. Não podemos permitir que as pessoas passem fome. E eu era presidente. E não fiz o suficiente.

P: Quais são seus arrependimentos?

R: O fato de ainda haver pessoas que têm dificuldade para comer.

P: E em um nível pessoal?

R: Em um nível pessoal, tenho de ser grato. A vida me deu muito. Você verá a simplicidade com que vivemos com minha senhora. Mas isso não é pobreza. Filosoficamente, somos estoicos. Precisamos de pouco (...) Estamos vivendo em uma época que gerou uma cultura consumista na qual as pessoas tendem subjetivamente a confundir ser com ter.

P: Você disse que sente que não conseguiu mudar nada, apesar de 40, 50 anos de militância. Você acha que a política, que os velhos que fazem política, falharam com os jovens?

R: Não sei se eles falharam com os jovens; eles falharam com a esperança. Porque em nossa juventude cometemos erros. Mas tínhamos a capacidade de sonhar. Acreditávamos que iríamos construir um mundo melhor (...) E que esperança os jovens têm hoje de um mundo melhor? Nós tínhamos utopia, eles não têm. A culpa não é dos jovens. A culpa é de uma época cega e insensível, como a nossa.

P: O senhor será lembrado, entre outras coisas, pela legalização da maconha. Qual é a sua avaliação sobre isso?

R: A política de drogas do mundo está falhando há quase 70, 80 anos. Mais e mais drogas estão sendo consumidas. E nenhuma energia é gasta para educar as pessoas a se controlarem, que é a única coisa que pode ser feita. E foi construído um império do mal que tem o poder de corromper tudo. Porque há dois problemas: a dependência de drogas e o tráfico de drogas. O tráfico de drogas é um veneno para a sociedade.

AFP