Um esquema de lavagem de dinheiro da maior facção criminosa de São Paulo e do país revela que a quadrilha, que está envolvida num escândalo na área de transportes públicos da cidade, também investe no mercado imobiliário e em clínicas médicas e odontológicas.
Os inquéritos policiais apontam que a necessidade de encobrir os lucros cada vez mais altos com a venda de drogas no Brasil e, sobretudo, para a Europa e a África está por trás da sofisticada operação financeira com empresas no nome de parentes e de laranjas de traficantes.
As informações policiais dão conta de que, em São Paulo, há pelo menos 250 loteamentos clandestinos nas mãos do crime organizado, que lesaram milhares de pessoas. Mostram ainda que, em 2020, um único criminoso - pioneiro na criação de consórcio de traficantes para pagar contêineres com drogas e enviá-los ao exterior - tinha pai protético e montou ao menos 60 clínicas odontológicas.
Segundo o delegado Elvis Secco, da Polícia Federal, não é de hoje que a facção abre ou adquire empresas com o único objetivo de lavar o dinheiro oriundo do tráfico de drogas. Secco foi coordenador-geral de Polícia de Repressão a Drogas e Facções Criminosas da PF de janeiro de 2019 a abril de 2021.
Durante sua gestão, sequestrou R$ 1,3 bilhão em bens de autointitulados empresários do crime organizado, entre iates luxuosos, carros importados e casas milionárias na costa mediterrânea. - Do total de patrimônio sequestrado, quase R$ 800 milhões eram só dessa facção criminosa - afirmou Secco, que hoje ocupa o posto de adido na Cidade do México.
Em dezembro passado, o Departamento de Tesouro dos Estados Unidos incluiu a facção de base prisional paulista como uma das mais perigosas e poderosas do mundo. O Primeiro Comando da Capital foi um dos 25 nomes, entre pessoas físicas, companhias e organizações, colocados em uma lista de bloqueios da Agência de Controle de Ativos Estrangeiros, instituição do órgão americano.
Com isso, o governo dos EUA entende que esses nomes representam risco significativo para o tráfico internacional de drogas. Pela primeira vez, um grupo criminoso brasileiro foi posto na relação.
O setor de transportes é um dos usados pelo crime organizado para lavar dinheiro. Em São Paulo, pelo menos duas empresas, com contratos milionários com a prefeitura, são investigadas atualmente por envolvimento com a facção paulista: a Transunião e a UPBUS, ambas da zona Leste da capital, alvos recentes de operações da Polícia Civil.
Segundo investigadores, a facção paulista expulsou funcionários da Transunião que não integravam o bando para colocar seus membros na diretoria. Ainda de acordo com a polícia, acionistas da UPBUS pertencem ao alto escalão da organização. Um deles, Silvio Luiz Ferreira, o Cebola, é cotado para assumir a sintonia geral na rua, o posto máximo em liberdade.
A estratégia de se imiscuir no ramo dos ônibus não é nova. Desde os anos 2000, o grupo está envolvido na chamada máfia dos perueiros. Começou com Antônio José Muller Júnior, o Granada, integrante da cúpula. Na época, ele havia sido resgatado de uma penitenciária do interior do estado e, com um documento falso, assumiu o cargo de diretor da Transmetro, uma cooperativa de transporte coletivo municipal e intermunicipal de Diadema, na Grande SP.
Segundo o Ministério Público de São Paulo, Granada passou a cobrar R$ 15 mil de cada condutor que quisesse fazer parte da cooperativa, uma espécie de taxa de manutenção. Abocanhava R$ 2 mil de cada um e ameaçava de morte aqueles que não colaboravam.
"O PCC hoje domina quase todo setor de transporte de ônibus de São Paulo. Por que você acha que nenhuma empresa séria, nenhuma multinacional, tenta entrar nesse mercado?", questiona um delegado do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) que investiga uma das empresas.
As peruas clandestinas deram origem às cooperativas de transporte, que foram legalizadas na capital, por meio de licitações públicas, entres os anos de 2002 e 2003, na gestão da prefeita Marta Suplicy (PT). Em 2013 e 2014, na administração de Fernando Haddad (PT), as empresas passaram a ser S/A (Sociedade Anônima), também por processo licitatório. Segundo o delegado, o crime organizado dominava as peruas clandestinas e só migrou para as empresas.
Investir em loteamentos irregulares foi outra forma que a facção encontrou para inserir os recursos ilícitos da droga na economia formal. Pelo menos desde 2017, integrantes do grupo atuam num esquema que envolve a criação de associações, incorporadoras e construtoras para invadir áreas de preservação ambiental na capital paulista, vender terrenos e lavar o dinheiro em contas de empresas de fachada.
Em áreas remotas, localizadas, por exemplo, às margens das represas Guarapiranga e Billings, na região Sul, derrubam remanescentes de Mata Atlântica e constroem "condomínios" ilegais com calçada, ruas, iluminação e rede de esgoto.
O primeiro registro da prática se deu com Wanderley Lemes Teixeira, o Manolo, que comandou esquemas ilegais em diversos loteamentos até ser assassinado em 2019. Executado a tiros, os policiais encontraram seu corpo ao lado de uma caminhonete e de uma mala de couro com cheques de clientes e contratos de compra e venda de terrenos. A investigação levantou indícios de que Teixeira comercializava terrenos e imóveis invadidos.
Condomínios e clínicas
Segundo Luiz Carlos do Carmo, delegado divisionário do Meio Ambiente da capital, a polícia já mapeou 250 loteamentos ilegais em São Paulo, parte deles gerida pela facção paulista. A mais recente operação que desarticulou uma das quadrilhas, a Imobiliária do Crime, do ano passado, apreendeu R$ 156 milhões em contratos de venda de terrenos.
Os criminosos comercializaram cerca de três mil terrenos em seis loteamentos, e 2 mil famílias já estavam estabelecidas. Só nessa operação foram expedidos 14 mandados de prisão preventiva e 36 de busca e apreensão. Setenta e sete carros foram apreendidos.
"A destruição provocada é muito grande, porque eles invadem áreas preservadas de Mata Atlântica que regulam o sistema de chuvas de São Paulo. O esquema tem uma aparência de legalidade, com corretores, imobiliárias, empresas, placas de engenharia e da Cetesb nos terrenos. As pessoas compram acreditando", explicou Carmo.
A abertura de clínicas médicas e odontológicas foi mais uma aposta da facção para o branqueamento de capitais. Em 2020, a Polícia Civil deflagrou a operação "Soldi Sporchi", ou Dinheiro Sujo, com o cumprimento de 60 mandados de busca e apreensão e 22 mandados de prisão temporária contra suspeitos de envolvimento em lavagem de dinheiro.
Segundo a investigação, o narcotraficante Anderson Lacerda Pereira, o Gordão, foragido da Justiça, aproveitou os conhecimentos de protético dentário do pai para abrir clínicas de odontologia e, mais tarde, médicas. Pereira, de acordo com a polícia, foi um dos pioneiros na exportação de drogas da facção para Europa, inaugurando uma nova modalidade de venda, a de consórcio, em que traficantes dividem os custos do contâiner para o envio.
"Ele chegou a ser fornecedor da Ndrangheta, a máfia italiana. Como começou a ganhar muito dinheiro com droga, precisou dar um jeito de lavar. Eram cerca de 60 clínicas em São Paulo e na região do Baixo Tietê. É mais fácil lavar dinheiro com empresas de serviço, porque você pode facilmente insuflar o número de atendimentos que fez", contou o delegado Fernando Santiago, do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), que na época investigou Pereira.
As clínicas, diz Santiago, eram usadas também para atender integrantes da facção baleados em confrontos, uma forma de burlar a notificação obrigatória de casos como esses à polícia. Pereira, segundo a investigação, era proprietário de mais de 20 casas num condomínio de luxo em Arujá. Uma das mansões, de cinco andares, tinha um túnel que levava para a rua.
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