Espólio de Ecko: crescem homicídios em áreas sob influência da milícia
Assassinatos aumentaram 33% nas regiões do estado afetadas pela disputa
Era manhã de sábado, 4 de dezembro, quando um carro preto encostou no portão de um condomínio na Estrada do Campinho, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio. O motorista parou por alguns segundos para aguardar a abertura da cancela, quando, de repente, dois outros veículos se aproximaram. Homens de roupas pretas e toucas ninjas desembarcaram e fuzilaram o carro preto e seu motorista. Horas depois, 95 cartuchos seriam encontrados pela rua. A vítima foi identificada como Rafael Alves Correa, o Caixote, apontado como gerente da milícia na Favela do Barbante, em Campo Grande.
Para a polícia, o homicídio de Caixote não é um caso isolado: faz parte de uma disputa sangrenta pelo espólio criminoso de Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefe da maior milícia do Rio, morto em junho passado numa operação da Polícia Civil. Agentes que investigam o grupo paramilitar — que, sob a chefia de Ecko, passou a dominar grande parte da Zona Oeste do Rio e trechos da Baixada Fluminense — ainda não conseguem precisar quantos assassinatos o racha entre os milicianos causou. No entanto, um levantamento feito pelo GLOBO com base em dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostra que a guerra na milícia provocou uma alta de homicídios nas regiões sob influência do grupo — que vai na contramão da queda no número de assassinatos registrada no Estado do Rio.
Desaparecimentos
De junho (mês em que a disputa começou) a novembro, áreas afetadas pela disputa registraram 160 assassinatos — 33% a mais do que no mesmo período do ano passado. Em todo o estado, os homicídios caíram 6%. Os desaparecimentos também avançaram nas regiões onde a milícia de Ecko têm influência: 321 casos foram registrados em 2021, contra 266 no ano passado — um aumento de 20%. Como grupos paramilitares são integrados, em sua maioria, por agentes egressos das forças de segurança que conhecem métodos de investigação, eles costumam sumir com os corpos das vítimas sem deixar vestígios, para não chamar a atenção das autoridades.
O GLOBO analisou os dois indicadores em seis áreas que eram dominadas pela milícia de Ecko — as circunscrições da 35ª DP (Campo Grande) e da 36ª DP (Santa Cruz), na Zona Oeste, e da 48ª DP (Seropédica), da 50ª DP (Itaguaí), da 52ª DP (Nova Iguaçu) e da 56ª DP (Comendador Soares), na Baixada Fluminense. Todas as regiões apresentaram aumentos no número de assassinatos. Em Santa Cruz, por exemplo, bairro da Zona Oeste que virou o QG do antigo chefão, foram 19 homicídios desde junho, 26% a mais do que no ano passado. Desde 2017, quando o grupo de Ecko expulsou o tráfico do bairro, os homicídios caíram ano a ano: passaram de 39 casos para 15 em 2020. Os assassinatos só voltaram a subir este ano, após a explosão da guerra.
O cenário se repete em zonas da Baixada Fluminense que foram invadidas pela milícia de Ecko nos últimos cinco anos. A circunscrição da 52ª DP (Nova Iguaçu), uma das afetadas pelo plano expansionista da milícia, atingiu, em 2021, o patamar mais alto de homicídios dos últimos cinco anos. Foram 18 assassinatos, o dobro de 2020. Já os desaparecimentos cresceram 30%.
Também foram avaliados os índices de duas áreas que sofrem influência do grupo de Ecko: as sob responsabilidade da 28ª DP (Praça Seca) e da 32ª DP (Taquara). Ambas são dominadas por outras milícias que receberam apoio de Ecko nos últimos anos para aumentarem ou defenderem seus domínios. Após a morte do criminoso, também passaram a ser palco de disputas entre milicianos e tiveram aumentos em assassinatos e desaparecimentos. Na circunscrição da 32ª DP, por exemplo, os homicídios subiram 155%, e os desaparecimentos, 51% no período analisado.
Zinho x Tandera
Segundo a polícia, a guerra na milícia teve seu estopim quando dois aspirantes a sucessores de Ecko romperam, logo após a morte do chefão. De um lado, ficou seu irmão, Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, que passou a controlar a milícia na Zona Oeste. Do outro, seu ex-braço direito, Danilo Dias Lima, o Tandera. Como foi o principal responsável pela expansão do grupo em direção à Baixada, Tandera assumiu a chefia da quadrilha na região. Desde junho, ambos os grupos promovem ataques para tentar invadir áreas dos rivais e aumentar seus territórios.
Os confrontos entre Zinho e Tandera atingiram seu ápice em setembro, quando várias vans foram queimadas em Santa Cruz e Paciência, na Zona Oeste. Os ataques aos veículos foram ordenados por Tandera, após a morte de dois de seus comparsas em Nova Iguaçu. O revide também deixou vítimas fatais. Houve ao menos seis assassinatos em um intervalo de seis dias na Zona Oeste, todos com suspeita de ligação com a disputa. Em novembro, um incêndio em posto de gasolina em Santa Cruz também pode ter tido relação com a rivalidade.
No mês passado, um vídeo que circulava nas redes sociais demonstrou o quanto o conflito entre os grupos está acirrado. Na gravação, milicianos ligados a Zinho desafiam os rivais segurando fuzis e com os rostos cobertos. “Só fuzileiro naval! É o bonde do Zinho”, diz um dos criminosos. “CL 220”, complementa outro comparsa. A sigla é uma referência a Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes, antigo chefe da milícia de Zinho e Ecko e irmão de ambos. Outro miliciano ainda cita Tandera e seu irmão, Delson Lima Neto, o Delsinho. “Essa aí é pra vocês”, diz o criminoso, com o fuzil apontado para a câmera.
A violência após a morte de Ecko não ocorre apenas entre quadrilhas rivais, mas também dentro dos próprios grupos. O clima de tensão causado pela disputa faz aumentar a desconfiança de que comparsas podem estar traindo a quadrilha ou planejando se aliar a adversários. Um dos casos investigados sob suspeita de que milicianos tenham sido mortos por seus próprios comparsas aconteceu no último dia 10. Um homem conhecido como Marcelo Negão, apontado como chefe da comunidade Reta da Base, em Santa Cruz, e seu segurança, conhecido como Vitão, foram executados, dentro de um carro, à luz do dia. A polícia apura se os dois foram assassinados em uma disputa dentro da quadrilha de Zinho.
Os episódios mais recentes de violência, entretanto, não se restringem a Campo Grande e Santa Cruz. Em Seropédica, na Baixada Fluminense, o clima é de tensão desde o início deste mês, quando criminosos ligados a Zinho iniciaram ataques na cidade. No local, o domínio é de Tandera, mas o irmão de Ecko decidiu tomar parte dos territórios do desafeto. Na última quarta-feira, a guerra na milícia na cidade acabou com o assassinato de um policial militar. Um grupo de 40 milicianos ligados a Zinho entrou em confronto com 15 PMs que patrulhavam o bairro Canto do Rio.
O cabo Devid de Souza Matos, de 42 anos, que era lotado no serviço reservado do 24º BPM (Queimados), foi atingido na cabeça e morreu. A polícia investiga se os paramilitares se preparavam para um ataque quando foram surpreendidos pelos policiais. Em Seropédica, que registrou aumentos de 30% nos homicídios e 8% nos desaparecimentos, a milícia tem altos lucros com extração ilegal de areia e loteamentos clandestinos — o que explica interesse dos rivais pela região.
Busca por alianças
A promotora Elisa Pittaro, que atua na Baixada, afirma que há uma grande instabilidade na região, gerada pela indefinição sobre novas alianças de milícias locais com os grupos de Zinho e Tandera. Ao longo de 2019, Ecko fechou acordos com chefes paramilitares locais e apoiou, com homens e armamentos, invasões a regiões que eram dominadas pelo tráfico. Com a morte do criminoso, alguns grupos sinalizaram a intenção de seguir associados a Zinho e outros, e romper com a família. Segundo a promotora, Tandera vem buscando alianças com uma facção criminosa do tráfico de drogas para se fortalecer.
— Temos uma perspectiva ruim na Baixada. Essa situação (de guerra) pode se agravar bastante com a definição de quem vai ficar do lado de quem. Estão formando alianças porque começarão a se enfrentar. Hoje, vejo que a violência é maior dentro das quadrilhas, com questões internas — analisa a promotora.
Um desses casos aconteceu no bairro Cacuia, em Nova Iguaçu, apenas um mês após a morte de Ecko. Dois policiais militares foram executados em um ataque a uma academia de ginástica. Câmeras de segurança flagraram quando dois homens vestidos de preto, usando luvas e capuzes, entram na academia com as armas em punho. O alvo era o PM Evaldo Souza Torres, de 38 anos, que estava dentro do estabelecimento. Ele foi atingido por dois disparos e morreu. A outra vítima era um policial que passava pelo local quando ouviu os disparos e reagiu. A suspeita da Polícia Civil é que o episódio tenha ligação com uma disputa dentro do grupo paramilitar da região, que era aliado a Tandera.