Indígena não pode voltar a aldeia  devido à Covid: "São 4 meses sem meus filhos"

Líder de associação para mulheres indígenas foi à cidade de São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, mas não conseguiu retornar em decorrência da pandemia

Margarida Maia com máscara
Arquivo Pessoal
Margarida Maia, da etnia tukano, foi a cidade para resolver questões de associação e não conseguiu retornar para casa

Há quatro meses, a indígena Margarida Maia, do povo tukano , conversa com os filhos apenas por meio do celular. Mãe solo, ela se preocupa diariamente com os jovens e revela que sente saudades dos abraços e do contato físico com eles. É o período mais longo que já passou longe dos filhos, uma garota de 13 anos e um garoto de 10.

No início de fevereiro, Margarida, de 38 anos, deixou a sua aldeia e seguiu para a área urbana de São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas. Representante de uma associação de mulheres, ela planejava passar pouco mais de um mês longe de casa. Até hoje, porém, ainda não conseguiu retornar para a aldeia.

"Estou com muitas saudades dos meus filhos, porque somos muito apegados. Sou pai e mãe para eles. Eles sempre me perguntam quando volto para casa", diz Margarida à BBC News Brasil.

Desde meados de março, São Gabriel da Cachoeira , considerado o município mais indígena do país (76% de seus moradores são indígenas, segundo o Censo de 2010), passou a adotar medidas de controle de circulação de pessoas. A principal preocupação na cidade era evitar que a covid-19 se espalhasse nas aldeias.

O acesso às terras indígenas do município passou a ser limitado. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) suspendeu a entrada de não indígenas nas comunidades da região do Alto Rio Negro, onde está localizada a aldeia de Margarida.

Mas as medidas para conter o avanço do novo coronavírus em São Gabriel da Cachoeira, cidade localizada na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, não foram suficientes para evitar a propagação do vírus na área urbana e nas aldeias da região.

No município de 45 mil habitantes, mais da metade deles vivendo fora da cidade, há mais de 2,5 mil casos de covid-19 e 43 mortes confirmadas até quarta-feira (24).

Em todo o Amazonas, mais de mil indígenas já foram infectados pelo novo coronavírus. Entre os povos indígenas de todo o Brasil, há mais de 4,4 mil casos do novo coronavírus confirmados e 125 mortes, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Os números nas aldeias, porém, segundo especialistas, é ainda maior. Isso porque a escassez de testes faz com que muitos indígenas, mesmo com sintomas, não sejam diagnosticados com a covid-19.

A ida para a cidade

Margarida vive no distrito de Iarauetê, pertencente a São Gabriel da Cachoeira. Quando seguiu em direção à cidade, ela planejava voltar para a aldeia em meados de março, após resolver questões referentes a um projeto da Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iarauetê (Amidi), da qual é presidente.

A Amidi é uma associação que tem o objetivo de representar e gerar renda para mulheres de 13 povos da região do Rio Negro. Uma das iniciativas da entidade é ajudar as indígenas na produção e comercialização de peças artesanais.

Arquivo Pessoal
Margarida (no centro) é considerada liderança importante para as mulheres indígenas da região do Alto Rio Negro

A associação havia ganhado recursos para um projeto para abordar questões sobre o território indígena. A iniciativa, que deve percorrer diversas comunidades da região, tem o objetivo de conscientizar as mulheres sobre os processos de invasão das terras indígenas por garimpeiros. Por se tratar de um tema normalmente discutido por homens, a Amidi propôs uma iniciativa para que sejam feitas assembleias sobre o assunto somente para as mulheres. "É importante que as mulheres também participem dessas discussões", diz Margarida.

O projeto obteve recursos por meio do Fundo Socioambiental CASA, uma ONG que financia iniciativas de grupos na América do Sul.

Para regularizar a primeira parcela de repasse para o projeto e resolver questões referentes a documentos da Amidi, Margarida seguiu em direção à cidade. O percurso entre Iarauetê e a área urbana de São Gabriel da Cachoeira dura cerca de 12 horas. No trajeto, é necessário transporte terrestre e uma embarcação.

Na cidade, assinou o contrato para o projeto e recebeu metade do recurso para a iniciativa. Ela também participou de encontros com representantes locais para debater sobre as questões indígenas locais.

Quando encerrou os compromissos, em meados de março, ela iria voltar para casa. Na época, diversas regiões brasileiras começaram a orientar sobre medidas de isolamento social.

Com o aumento de casos de coronavírus no país, o projeto de conscientização das indígenas sobre territorialidade foi suspenso temporariamente — desde o começo desse período, os garimpeiros aproveitaram para ampliar suas operações em terras indígenas.

Um decreto municipal de São Gabriel da Cachoeira, em 18 de março, orientou que os moradores adotassem medidas de isolamento para conter a propagação do vírus.

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Os números de embarcações em São Gabriel da Cachoeira diminuíram drasticamente, para evitar a entrada ou saída de pessoas em terras indígenas.

Na cidade, Margarida não conseguiu voltar para a aldeia. "O recurso do projeto ficou suspenso, porque só a tesoureira pode mexer nesse dinheiro e ela ficou em Iarauetê, por causa da pandemia. Eu não tinha dinheiro para pagar uma embarcação para voltar para casa", diz a indígena.

"Quando pedi carona, as pessoas disseram que tinha que ajudar com a gasolina. Como eu não tinha condições para isso, fiquei por aqui mesmo. Não tinha dinheiro e não tenho até agora", conta.

A indígena relata também que ficou com receio de voltar para a aldeia e levar o vírus para seus familiares. "Muitas pessoas que estavam na cidade decidiram dar um jeito para voltar para suas aldeias, sem tomar nenhum cuidado. Acho que isso pode ter feito com que os casos de coronavírus aumentassem", diz Margarida.

Somente no distrito Iauaretê, em que ela mora, há 100 casos confirmados até o momento. "Antes do primeiro diagnóstico na aldeia, já havia pessoas com sintomas que hoje acreditamos que poderia ser o coronavírus, mas não havia testes. Os números na nossa comunidade, por exemplo, são maiores do que o que temos oficialmente até o momento", diz Margarida.

Alguns hábitos dos indígenas, como compartilhamento de objetos e as proximidades entre as casas, são considerados facilitadores para a propagação do Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus. As dificuldades de acesso a assistência médica, mesmo antes da pandemia, colaboram para as dificuldades enfrentadas pelas comunidades de todo o Brasil.

Amidi
Margarida representa associação que defende e orienta mulheres indígenas no interior do Amazonas

Profissionais de saúde de São Gabriel da Cachoeira relataram à BBC News Brasil, em reportagem do mês passado, que há comunidades da região nas quais todos os membros apresentam sintomas de covid-19. No entanto, não entram para as estatísticas oficiais em razão da falta de testes.

O único hospital de São Gabriel da Cachoeira, gerido pelo Exército, lotou em decorrência da explosão de casos. Pacientes intubados na unidade de saúde passaram a ser transferidos de avião para Manaus.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma que tem prestado assistência aos indígenas e dado orientações para evitar a propagação do novo coronavírus nas aldeias.

O retorno para casa

Desde fevereiro, Margarida está na casa de uma de suas irmãs. Ela tem aproveitado o período na cidade para resolver outras questões da associação e para buscar formas de ajudar as comunidades de sua região em meio à pandemia. "Tenho buscado regularizar algumas situações da associação e tenho escrito novos projetos. É uma forma de tentar aproveitar o meu tempo na cidade", diz.

Enquanto aguardava uma definição sobre o seu retorno à aldeia, Margarida teve de lidar com outra doença infecciosa que até o início deste ano era uma das mais comuns em São Gabriel da Cachoeira: a malária. "Acredito que fui picada quando fui à casa de uma amiga na cidade. Lá tem muitos mosquitos", afirma.

"Sempre houve muitos casos de malária e dengue aqui na cidade. Essas eram as principais preocupações. Mas agora até esqueceram um pouco, por causa do coronavírus", diz Margarida.

Ela apresentou sintomas como febre e dores no corpo. "Pensei que era a covid-19, mas fiz os exames e descobri que era malária", conta. A indígena afirma que tem se recuperado bem.

Amidi
Mulheres indígenas recebem apoio para produzir e comercializar artesanatos em associação

Mesmo doente, ela não parou de buscar formas para ajudar as mulheres de sua comunidade. Em meio à pandemia, muitas delas que trabalham como artesãs perderam a única fonte de renda, em razão do isolamento social. "Tem muitas famílias passando dificuldades nas aldeias", lamenta.

Margarida conseguiu, no departamento de mulheres da Foirn, 50 cestas básicas para as mulheres de sua região. "É uma ajuda muito importante neste momento", diz. Os donativos deverão ser entregues no próximo fim de semana. Na data, a indígena pretende acompanhar a embarcação e retornar para casa.

Ela tem contado as horas para voltar para perto dos filhos. Esta é a primeira vez que a indígena passa mais de um mês longe deles. "Já fiz outras viagens, mas nunca pensei em ficar tanto tempo longe, ainda mais durante uma pandemia. Fico preocupada se eles estão bem", conta.

Os pais dela, que têm 78 anos, estão cuidando dos netos. "Eu sei que meus filhos estão em boas mãos. Mas também fico preocupada com meus pais, porque são idosos e hipertensos. Todos os dias ligo para uma irmã que mora na aldeia para perguntar como estão as coisas."

Ao retornar para a aldeia, ela pretende procurar a equipe médica do Distrito Sanitário Especial Indígena da região. "Vou conversar com os profissionais de saúde e vou ficar em isolamento. Se possível, farei o teste para a covid-19", comenta.

Apesar das dificuldades dos últimos meses, Margarida afirma que os meses em que permaneceu na cidade se tornaram importantes. "Ao menos pude conquistar coisas para a associação e ajudar outras pessoas, como por meio das cestas básicas. Se estivesse na aldeia, não poderia ajudar tanto nesse período", declara.

A associação para as mulheres indígenas foi fundada há mais de 25 anos. Margarida conta que uma das coisas que a motiva a seguir com a iniciativa é uma frase que escutou da fundadora da entidade, anos atrás. "Ela me disse que todo o trabalho que tenho feito é para o bem das mulheres indígenas, porque elas precisam ter voz. Isso me incentiva muito", comenta.