Sobrevivente de emboscada, indígena Guajajara relata o que viu

Atingido por dois tiros, Laércio Guajajara contou como foi o ataque, dentro da TI, que matou Paulo Paulino no Maranhão

“A luta continua, não vamos parar. Mesmo que ele [Paulo Paulino] tenha morrido, mesmo que outros morram, enquanto tiver indígenas, enquanto tiver guerreiros, a luta vai continuar”, disse Laércio Guajajara ao cineasta Taciano Brito e à liderança indígena Fabiana Guajajara. Ambos estiveram com ele entre sexta e sábado, após o indígena receber alta do hospital na cidade de Imperatriz do Maranhão.

À Pública, eles contaram que Laércio, ferido, correu 10 quilômetros para escapar da emboscada que, na última sexta-feira à tarde, matou o indígena Paulo Paulino Guajajara, 26 anos, conhecido como “Lobo mau”. Os dois indígenas foram emboscados por cinco madeireiros dentro do território indígena Araribóia, no Maranhão.

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Eles haviam partido da aldeia Lagoa Comprida, norte da TI, na região de Bom Jesus das Selvas, a 100 km do município de Amarante, para caçar. Naquele dia, eles não estavam fazendo o trabalho de guardiões da floresta, um grupo formado por mais de uma centena de indígenas que monitora o território Araribóia, onde vivem também os povos Awa-Guajá, para combater a retirada ilegal de madeira e focos de incêndio.

Segundo Laércio, a caça era para que eles próprios pudessem se alimentar e levar para a família. “Paulino tem um filho pequeno”, diz o cineasta, que está finalizando o documentário Iwazayzar – Guardiões da Natureza , sobre a batalha dos Guajajara para proteger seu povo, a terra sagrada, e seus parentes, os Awá Guajá.

Antes da caça, os dois indígenas buscaram água num lago — “a água deles tinha acabado e eles foram limpar uma cacimba para vir uma água nova. E foram tirando bota, tirando colete, essas coisas para depois ir caçar”, conta Taciano. “Eles já estavam nesse processo e o Laércio ouviu um barulho no mato, algo se mexendo, que ele achou que fosse alguma caça, um porcão do mato”. Foi quando cinco homens armados saíram da mata.

“Começaram a atirar, numa distância não muito longe, e aí ele [Laércio] foi tentando se esconder, mas foi atingido no braço e, quando se deu conta, que olhou pro lado, o Paulino já tinha sido alvejado no rosto e já estava no chão”, diz Taciano. “Ele ainda tentou puxar o Paulino pra perto dele mas viu que ele já estava morto. Ele ainda ficou mais um tempo ali tentando se esconder, e o pessoal atirando até que ele correu para tentar fugir e foi atingido nas costas”.

Segundo informações obtidas pela Pública , não há confirmação de que um dos não-indígenas foi baleado e nem de que seu corpo está desaparecido como foi divulgado ontem. A avaliação inicial da Polícia Militar de Amarante do Maranhão é de que houve uma emboscada, sem indício de confronto.

“Muita gente pensou que eles estavam fazendo uma ação e houve um desentendimento e houve troca tiros. Não foi. Eles estavam no nosso território, na nossa casa e o ódio dos madeireiros, dos invasores, é tão grande e estão tão incomodados com esse trabalho de proteção dos guardiões, que eles já estão chegando a esse ponto de fazer emboscada, de mandar pistoleiros. Laércio hoje é um milagre. Ele nasceu de novo nessa situação. Era para ele estar morto. Por que foram cinco pistoleiros para executar”, diz Fabiana Guajajara, liderança do território Araribóia de Laércio e Paulino.

Laércio, que sobreviveu ao ataque, vai ingressar no programa de proteção do governo do Maranhão. Desde que o programa entrou em vigência, em 2016, outros 14 índios, de diferentes etnias do Maranhão, estão sob proteção, segundo a Secretaria de Direitos Humanos.

Laércio foi ferido com dois tiros, um no braço e outro nas costas. “Ele ainda está se recuperando, mas está fora de perigo, de vez enquanto sangrava a ferida, está um buraco mas eles costuraram, com pontos. Mas sente muitas dores, o braço inchado”, contou Taciano, antes de avisar que ficaria sem sinal de celular — após o encontro com Laércio, o cineasta voltou ao território Arariboia para o funeral de Paulino.

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Fabiana Guajajara afirma que apesar das graves ameaças, os guardiões não vão se intimidar. “Recentemente eles tinham queimado muitos caminhões, tratores de madeireiros, principalmente naquela região que é próxima a Buriticupu”, diz. Ainda segundo ela, Paulino “não foi primeiro, nem o segundo, nem o terceiro, mas é o quinto guardião que foi assassinado”. Ela pede justiça. “A gente não quer que a morte dele seja em vão. Mais um que se foi e fizeram pouco caso. A gente quer que tenha repercussão, sim. Que a luta dele valeu a pena e vale a pena”, afirma.

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A TI onde houve o ataque foi homologada e registrada em 1990 com 413 mil hectares, onde vivem cerca de 6 mil indígenas Guajajara, ou Tenetehar, e Awá-Guajá livres, ou seja, em situação de isolamento voluntário.

Guardiões da floresta

As terras dos Guajajaras são vigiadas e protegidas pelos Guardiões da Floresta desde 2016 — papel que caberia ao Estado brasileiro. Em contato direto com invasores os “guardiões” se tornam alvo de criminosos.

O secretário de Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão, Francisco Gonçalves afirma que o agravamento dos conflitos que resultaram na morte de Paulo Paulino é resultado a postura adotada pelo governo Jair Bolsonaro. “Os conflitos são de décadas, mas se agravou este ano com o desmonte dos órgãos federais e o abandono das políticas de proteção aos povos indígenas. O discurso beligerante e de ódio que o governo Bolsonaro passa para os grupos criminosos funciona como um salvo-conduto para entrar em terras indígenas”, disse Gonçalves à Pública .

A região em que os índios foram emboscados, segundo ele, vem sendo invadida por pecuaristas, madeireiros e garimpeiros. Na floresta densa entre Amarantes e Bom Jesus da Selva vivem também grupos de índios isolados, que perambulam livremente sob o risco de serem encontrados por invasores. No sábado, a bordo de um helicóptero, o secretário percorreu a região do conflito, conversou com o sobrevivente, Laércio Souza Silva [nome oficial do Guajajara], e acompanhou o resgate do corpo de Paulo Paulino, o que, segundo Fabiana, levou mais de 10 horas devido ao difícil acesso.

“A gente pediu intervenção da polícia do Estado para fazer a atuação direta de buscar o corpo, porque se a gente fosse esperar a PF, o corpo ainda estaria lá”, diz a liderança indígena.  O secretário disse à reportagem que o clima é tenso nas comunidades indígenas e que há riscos de novos conflitos. “Nos preocupa muito a ausência de órgãos federais na proteção das comunidades”, avalia Gonçalves.

Em nota , a Polícia Federal informou que investigará a morte do líder indígena e que uma equipe de policiais da Superintendência Regional da PF no MA está se deslocando para a localidade para apurar as circunstâncias do fato. Até a tarde de ontem, porém, o secretário não tinha notícias desse deslocamento, mesmo depois do contato feito pelo secretário de Segurança do Maranhão, Jefferson Portela, com a Superintendência da PF em São Luiz e, mais tarde, com a delegacia de Imperatriz.

Embora a responsabilidade pela proteção das terras e comunidades seja atribuição da Polícia Federal, Francisco Gonçalves disse que os órgãos de direitos humanos e de segurança do Maranhão vão colaborar com os esforços e estão atuando conjuntamente para ampliar a estrutura de segurança nos limites da TI Araribóia. O governador do Maranhão, Flávio Dino, reiterou esse compromisso nas suas redes sociais.

A Secretaria de Segurança Pública também anunciou a criação de um núcleo de proteção indígena, que será formado por policiais treinados para atuar junto às comunidades indígenas, mas fora dos territórios e, segundo Gonçalves, respeitando as atribuições federais. O novo serviço será uma ampliação das atribuições atualmente exercidas pelo Batalhão Ambiental da Polícia Militar e pelo Corpo de Bombeiros.

“Vamos colaborar com os órgãos federais com o que for necessário”, afirmou o secretário. Segundo ele, o silêncio do governo federal diante da provável proliferação de conflitos deve, no entanto, resultar na intensificação das denúncias internacionais sobre a situação dos indígenas para aplicação das recomendações do Sínodo da Amazônia, encerrado com apelos de respeito à integridade e tradição das comunidades indígenas.

Entre janeiro e setembro de 2019, o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Cimi, contabilizou 160 casos de invasão a 153 terras indígenas de 19 estados .

Fonte:

Neste imagem: Laércio disse, ‘hoje caiu uma semente chamada Paulo mas vai germinar mais guerreiros’.

Reações de pesar e indignação

A liderança indígena Sônia Guajajara, da mesma TI de Paulino, está na Alemanha em reunião com lideranças e parlamentares de países europeus justamente para denunciar as mortes de indígenas no Brasil, sob a campanha “Sangue Indígena, nenhuma gota a mais”.

Sônia faz parte da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que também publicou uma nota de repúdio e pesar pelo assassinato do guardião Guajajara. “Nossas terras estão sendo invadidas, nossas lideranças assassinadas, atacadas e criminalizadas e o Estado Brasileiro está deixando os povos abandonados a todo tipo de sorte com o desmonte em curso das políticas ambientais e indigenistas”, diz trecho da nota.

Organizações não governamentais como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) , Instituto Socioambiental (ISA) , entre outros, publicaram notas de pesar e repúdio ao Estado. O CIMI disse que a responsabilidade pela morte do indígena é do Estado e do governo federal. “As recorrentes falas do presidente da República contra a demarcação e regularização dos territórios, seguidas de um ambiente regional preconceituoso contra os indígenas, têm sido o principal vetor para invasões e violência contra os povos indígenas no Brasil”, diz a nota do CIMI.

A promessa de seguir vigiando o território feita por Laércio foi reforçada à Pública por Fabiana Guajajara. “Esse recado é nosso. Aqui dentro do nosso território todos somos guardiões. As mulheres, as crianças, os idosos. Laércio falou. Eu estou falando. O que eles querem é nos intimidar, é nos calar é fazer ter medo. E o que a gente precisa dar como resposta é dizer que, independente de quem morra, independente do que aconteça a gente vai dar continuidade a luta. E que hoje morreu um Paulino mas é uma semente. Laércio disse, ‘hoje caiu uma semente chamada Paulo mas vai germinar mais guerreiros’. Isso não vai nos enfraquecer”, afirmou.