Projeto de lei da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) foi bastante criticado por especialistas
Cleia Viana/Câmara dos Deputados - 14.8.19
Projeto de lei da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) foi bastante criticado por especialistas

Um projeto de lei apresentado pela deputada federal e advogada Bia Kicis (PSL-DF) quer responsabilizar advogados que receberem honorários - remuneração pelos serviços prestados - com o conhecimento da origem ilícita do dinheiro e propõe pena de um a quatro anos de prisão, além de alterar o Código Penal, o Código de Processo Penal e também a Lei de Lavagem de Dinheiro. A PL 3.787/19, porém, enfrenta forte resistência de advogados renomados e representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que consideram a proposta inconstitucional e imoral.

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A justificativa usada pela parlamentar é de que advogados fazem parte de "um grupo muito suscetível de receber recursos financeiros oriundos de atividades ilícitas" e que, por isso, devem prestar informações periódicas sobre suas atividades ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

"Estamos em um momento de combate à corrupção muito grande no Brasil, é importante que a gente cerque todos os caminhos que possam levar à lavagem de dinheiro", alega a vice-líder do PSL na Câmara, em entrevista ao iG Último Segundo .

Para o professor de processo penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro federal da OAB, Gustavo Badaró, no entanto, a Constituição Federal garante o sigilo entre cliente e advogado e que o profissional pode se tornar, ao mesmo tempo, defensor e acusador se for obrigado a comunicar qualquer órgão estatal sobre possível prática de crime de um cliente.

"Em quem o cliente deve confiar ele passa a ter desconfiança e o exercício da advocacia se torna impossível. Há sérios problemas de constitucionalidade nesse projeto", afirma.

Badaró argumenta que há uma tentativa de criminalizar o exercício da advocacia com o projeto. "Por que apenas honorários advocatícios? Se uma pessoa paga serviços hospitalares com dinheiro ilegal, o hospital é obrigado a saber de onde veio aquele dinheiro? Ou a regra vale pra todo mundo ou não deve se aplicar a ninguém".

O professor, entretanto, explica que o advogado já pode ser enquadrado no crime de receptação caso receba produto de crime. "Não estou defendendo um privilégio para que o advogado receba como honorários coisa que ele sabe que é crime, mas que se ele ou qualquer profissional fizer isso, já será enquadrado no crime de receptação", acrescenta.

Na mesma linha de argumentação segue o advogado criminalista e atual vice-presidente da OAB-SP, Ricardo Luiz de Toledo. Para ele, o projeto de lei é uma tentativa de acuar o trabalho independente da defesa no País e pode ser usado até mesmo como chantagem no futuro.

"É um retrocesso e, além disso, é uma forma de afronta ao exercício independente da advocacia. Certamente no futuro vai ter promotor pegando o recebimento daqueles advogados mais combativos, aguerridos na defesa, e usando como forma de represália. É uma forma de intimidar o exercício da advocacia e acuar a defesa nesse País", ressalta.

Gustavo Badaró pondera também que o crime de lavagem de dinheiro envolve "atividades que tenham por finalidade ocultar ou dissimular a natureza do dinheiro ilícito" e que existe "uma grande dificuldade" em enquadrar o "mero recebimento de honorários advocatícios no conceito de lavagem", como quer a deputada do PSL.

"A pessoa que recebe uma quantia como pagamento de sua atividade, qualquer atividade, ela não recebe para ocultar ou dissimular a natureza dela, mas como remuneração da atividade profissional", reitera o professor.

Toledo segue o mesmo pensamento de seu colega e lembra que muitas vezes o pagamento de honorários é feito por um familiar quando alguém está preso e procura um advogado.

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"O profissional da advocacia não tem como saber de onde vem a fonte de receita do seu cliente. Pode acontecer de um terceiro cobrir as despesas", pondera o vice-presidente da OAB-SP. "Se eu sou contratado para receber alguém acusado de lavagem, a pessoa pode ter atividade lícita também. Eu não sei de onde vem o dinheiro dele", completa.

"Visão punitivista"

Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
Agência Brasil
Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay


Conhecido por atuar em casos de grande repercussão, o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, lamenta a proposição e critica o que ele vê como uma "visão punitivista" incentivada pelo governo Bolsonaro e as políticas do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

"Esse projeto não é só inconstitucional como é imoral. Parte do pressuposto que o advogado estará fazendo lavagem com o recebimento de honorários", opina Kakay, que já atuou em casos envolvendo políticos, grandes empresários e celebridades.

"O estado, com a estrutura que tem, às vezes leva um ano ou mais de investigação sofisticada para deflagrar uma operação. Imagina o advogado ter que fazer uma investigação da origem do dinheiro sob pena de não poder entrar no caso, enquanto o cidadão está preso? É um retrocesso, uma falta de respeito com a classe dos advogados. Isso é fruto dessa visão punitivista que estamos vivendo. O governo Bolsonaro e o ministro Moro trouxeram esse pensamento punitivo pra sociedade. É um pensamento encarcerador. Esse projeto é a cara do 'projeto Moro'", complementa.

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Deputada lembra caso de Carlinhos Cachoeira, mas advogado discorda

Carlinhos Cachoeira foi defendido pelo ex-ministro Marcio Thomaz Bastos, que recebeu honorários milionários
Agência Senado
Carlinhos Cachoeira foi defendido pelo ex-ministro Marcio Thomaz Bastos, que recebeu honorários milionários

Bia Kicis lembra ainda o caso do ex-ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, que defendeu por muitos anos Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, contraventor acusado de comandar um esquema de jogos ilegais envolvendo servidores públicos e privados, que, segundo ela, declarava patrimônio de R$ 200 mil e chegou a pagar honorários em espécie de R$ 15 milhões para o advogado. Para a deputada, não tem "como supor que o advogado não imaginava que era dinheiro fruto do crime" e que esse foi um caso que um "criminoso utilizou seu advogado para lavar dinheiro”.

Gustavo Badaró discorda e aponta que o caso não deveria ser enquadrado como lavagem de dinheiro. "Poderia até ser receptação, mas o Marcio não recebeu os R$ 15 milhões do Carlinhos para ocultar. A deputada está equivocada. Foi pagamento pelos serviços prestados", reitera, lembrando que, quando faleceu, em novembro de 2014, o ex-ministro deixou herança avaliada em R$ 393 milhões.

"É um risco à defesa e quando há um risco à defesa, potencializa o prejuízo ao Estado Democrático de Direito. A forma como estão colocando é pra fazer com que qualquer cidadão não tenha defesa ou seja uma defesa intimidada. É um projeto perigoso", finaliza Ricardo Toledo.

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Apesar de três advogados contatados pela reportagem terem se colocado contra a proposta, a deputada revelou que desde quando a apresentou, "recebeu muito apoio por parte da sociedade e até de advogados".

"Muitos advogados me mandam mensagem, me parabenizam. Acho que aquele que recebe dinheiro sujo e finge não ver colabora para a lavagem de dinheiro e deveria ser punido por isso".

De acordo com o site da Câmara dos Deputados, a proposição foi recebida pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), mas não tem previsão para ser analisada.

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