Autora do pedido de impeachment fala sobre sua vida após a queda de Dilma e diz que "só uma pedalada ou só um decreto" não a faria pedir o afastamento de Michel Temer: "Não sou a 'pedidora-de-impeachment-geral' da União!"
Duas imagens de São Judas Tadeu, o padroeiro das causas desesperadas, enfeitam a prateleira recheada de publicações da área jurídica em um pequeno escritório nos Jardins, bairro na região central de São Paulo. “Um já era meu, o outro eu ganhei durante o impeachment”, explica a dona das estatuetas, a jurista e advogada Janaina Paschoal, autora do pedido que resultou no afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff.
Relegada a assinar a ação abaixo dos juristas Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior, a paulistana Janaina Paschoal, de 42 anos de idade, é na verdade a principal responsável pelo processo que impôs um fim precoce ao mandato de Dilma. Foi também quem mais atuou – e ganhou holofotes – durante as discussões realizadas no Congresso.
Janaina chorou, esbravejou e vez ou outra até se descabelou diante dos parlamentares. Mas nega que seja uma pessoa de personalidade explosiva.
“Você acha de verdade que eu sou explosiva? Eu acho que sou uma pessoa extremamente contida. Sou tudo, menos explosiva”, defende. “Depois de todas as humilhações que eu passei... Inventaram que eu estava sendo paga, que eu era ligada a partido, que era ligada ao Michel Temer... Eu nunca vi o Michel Temer na minha vida! E com tudo isso acontecendo, eu ficava quieta”, justifica-se.
Alérgica a esmaltes e a outros produtos cosméticos, Janaina se permitiu passar um lápis de olho na manhã da última sexta-feira (6), quando recebeu a reportagem do iG no escritório que divide com duas irmãs. Na véspera, havia rejeitado a ideia de conceder a entrevista no Parque Ibirapuera, onde estaria disposta a “fiscalizar os banheiros” durante a gestão do novo prefeito da capital paulista, João Doria (PSDB).
“A maioria das pessoas gosta de mim, mas tem alguns que são complicados. Não gosto de dizer com antecedência onde estarei, sabe?”, explicou a advogada na ocasião.
O receio revela um lado desconfiado da jurista, que também é dada à crença de teorias um tanto quanto conspiracionistas (Janaina cogitou que um ataque de hackers contra o portal Uol naquela sexta-feira pudesse ser uma ação de marketing do site de conteúdo pornográfico Redtube). Mas também remonta a episódios vivenciados durante e após o processo de impeachment.
Janaina foi hostilizada no saguão do aeroporto de Brasília em junho do ano passado, quando o impeachment de Dilma era discutido na comissão especial no Senado. “Vieram pra cima mesmo, foi bem físico o negócio. Eu achei que ia apanhar”, lembra a advogada, que meses depois voltaria a lidar com ‘retaliações’.
“Precisei tirar licença da faculdade logo depois que o impeachment foi aprovado. Recebi cartas complicadas, com ameaças muito pesadas mesmo”, conta Janaina, que leciona na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo. “Qualquer mortal teria abandonado o processo. Mas eu estava convicta. Não ia largar.”
E não largou.
Quatro meses após a conclusão do julgamento de Dilma, a advogada diz que está avaliando a possibilidade de escrever um livro sobre a batalha do impeachment. E garante não se arrepender de ter “dado a cara a tapa e comido o pão que o diabo amassou” durante o processo.
“Estou muito aliviada. O País está numa fase difícil e isso me preocuopa... Mas o alívio que eu sinto de não ter mais o PT no poder é algo indescritível.”
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Fora, Dilma
Janaina gesticula bastante para ‘ilustrar com as mãos’ as situações que narra e costuma pontuar algumas de suas frases com “você entendeu?”.
Ela confidencia que o trabalho do juiz federal Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato na primeira instância, foi uma de suas inspirações para iniciar o processo de impeachment.
“Eu precisava ajudar esse cara. Estava muito chateada e percebi que a oposição [ao governo Dilma] não ia fazer nada. Comecei a perceber que várias pessoas estavam se levantando dentro de seus órgãos. E eu sempre fui muito estudiosa, então eu tinha os instrumentos para isso”, relata.
A empreitada, no entanto, não foi simples. Vários colegas se negaram a apoiá-la, enquanto alguns amigos a chamavam de “louca”. A iniciativa precisou ainda ser escondida de parte da família de seu marido, “que é superpertista”, segundo Janaina.
Escreveu a redação inicial do pedido de impeachment sozinha, em casa, ao longo de seguidos fins de semana. O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, que fora seu orientador na Faculdade de Direito da USP, negou-se a assinar o pedido num primeiro momento. Já o jurista Hélio Bicudo, um dos mais referendados nomes do meio jurídico brasileiro – também um dos fundadores do PT –, comprou a ideia.
“Foi um presente de Deus. Todo o meu trabalho jurídico e na condução do processo foi determinante para que chegasse ao fim. Mas num primeiro momento, foi o peso da figura do doutor Hélio que abriu a porta. Não teria chegado ao final se eu estivesse sozinha.”
Sou uma pessoa extremamente contida. Sou tudo, menos explosiva"
Janaina embarcou para Brasília em setembro de 2015. Acompanhada de Maria Lúcia, filha de Hélio Bicudo, protocolou o pedido de impeachment na secretaria da Câmara dos Deputados e ficou aguardando o então presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para fazer uma entrega simbólica do documento.
O gesto, no entanto, não fora combinado com Cunha, o que fez com que a espera no Salão Verde da Câmara se prolongasse por sete horas. Só foi encerrada devido à intervenção dos deputados Ricardo Barros (DEM) e Bruno Araújo (PSDB), coincidentemente dois parlamentares alçados ao posto de ministros após a queda de Dilma e o início da gestão Michel Temer.
“O Cunha é uma pessoa absolutamente ilegível. Não dá para ler, ele é muito protocolar. Disse que iria analisar como fez com todos os outros pedidos e nós saímos de lá sem a menor ideia do que ia acontecer”, lembra Janaina.
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O pedido foi aceito no dia 2 de dezembro de 2015. Petistas e aliados de Dilma acusam Eduardo Cunha de ter admitido a ação para retaliar o governo, que se recusava a defender o peemedebista no processo que ele enfrentava no Conselho de Ética da Câmara – e que mais tarde viria a culminar na cassação do seu mandato.
Janaina diz não se importar com essa suposição. "O que importa é que ele fez o que era certo. Mas acho que ele não teria como rejeitar um pedido tão bem fundamentado."
PSDB e petrolão
Uma das fundamentações da peça, no entanto, acabou deixada de lado: o esquema de corrupção na Petrobras, que envolvia diversos partidos e empreiteiras. "Ninguém queria mexer com a Petrobras. Os políticos não queriam que isso fosse falado."
A reclamação alcança, inclusive, integrantes do PSDB, partido que Janaina foi acusada de ter ligação. A advogada chegou a se reunir com integrantes da cúpula tucana meses após o presidente nacional da legenda, o senador Aécio Neves (MG), ter sido derrotado nas urnas por Dilma. Janaina participou do encontro a convite de Miguel Reale Júnior e nega que houve tratativas sobre o pedido que levaria à Câmara mais de um ano depois.
"A oposição só faltou me dar uma rasteira. Se você resgatar as entrevistas do Fernando Henrique [Cardoso], ele estava sempre contra o impeachment. O Alckmin também. O Aécio foi falar a favor do pedido talvez uma ou duas vezes, isso já no fim do processo. O Serra eu nem lembro de ter falado nada, e hoje ele é ministro", ataca a jurista. "Se eu não tomasse o protagonismo, ninguém ia tomar. E isso incomodou muita gente."
Com o "protagonismo", vieram as ameaças e provocações, enquanto o estresse decorrente do processo levou Janaina ao hospital em três ocasições, todas elas devido à pressão alta.
Também foram levantadas suspeitas acerca das reais intenções de Janaina com o impeachment e surgiram piadas que exploravam desde sua religiosidade até sua aparência. A advogada não descarta que parte desses ataques fosse reflexo de uma cultura machista, mas diz "não gostar desse discurso da vitimização, que é tipicamente petista". "Mas se a pessoa não reconhecer que existe o machismo e que existe uma 'necessidade' de diminuir a mulher, ela vive em outra realidade", pondera.
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Dilma é Dilma, Temer é Temer
O cabelo de Janaina ganha volume aos poucos, conforme o creme para pentear começa a secar. Seco também já está o copo d'água à sua frente, repousado ao lado de um exemplar da Bílblia Sagrada, do livro "Impeachment – Instrumento da Democracia" e de uma edição especial dos 100 anos da Escola de Comandantes da Polícia Militar de São Paulo.
Janaina abre um parênteses para comentar o processo em tramitação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pode cassar a chapa Dilma-Temer: "Eu vou falar como brasileira". "Prefiro que não haja elementos para a cassação, mas, caso houver, que seja feito o que a lei manda."
Vira e mexe, segundo relata a advogada, o telefone do escritório das irmãs Paschoal é acionado por pessoas interessadas em contratar Janaina para formular um pedido de impeachment contra Temer.
"Eu digo que não vislumbro elementos para isso, mas, se a pessoa os vê, eu digo que ela pode copiar o meu pedido, ir lá e protocolar. Eu não me sinto na obrigação de fazer nada", esbraveja. "Não sou a 'pedidora-de-impeachment-geral da União'. Isso tem um custo de saúde, profissional e financeiro. Eu precisei pagar todas as minhas passagens para Brasília e a minha hospedagem lá. E você pode ver, pelo meu escritório, que eu não sou uma pessoa rica."
Ela explica que, no caso de Dilma Rousseff, não foi "só os decretos de crédito suplementar não autorizados pelo Congresso", ou "só as pedaladas fiscais". "Foi a fraude deliberada em que, por dois anos, a Dilma encobriu tudo. E foi toda a relação promíscua com a Odebrecht. Se eu vislumbrar o risco que eu vi para o País com a Dilma, estou disposta a tomar uma iniciativa parecida. Mas não é um decreto isolado ou uma pedalada isolada que vai fazer isso", diz.
Janaina reconhece que o Brasil ainda parece distante de recuperar a estabilidade política e econômica. "Mas eu nunca disse que os problemas do País estariam resolvidos com o impeachment", pondera. Ainda assim, Janaina consegue enxergar avanços com o atual governo de Michel Temer.
"A Dilma nunca voltou atrás com nada, nunca assumiu um erro. Sempre achava que estava certa, como é a postura do PT. Já o Temer voltou atrás quando foi criticado. Eu acho isso ótimo."
Ao comentar a crise no sistema penitenciário desencadeada com a carnificina ocorrida em Manaus no início da semana passada, Janaina sugere que, para desmantelar as facções criminosas que atuam dentro e fora dos presídios, é necessário começar a punir os mais poderosos.
"Quando a lei é cumprida, os outros aprendem, É visível o grau de entrosamentro entre o crime de massa e o crime de colarinho branco. A corrupção dos poderosos dá um discurso para os criminosos de massa, então, se você começa a prender quem está em cima, quem está embaixo pensa melhor antes de entrar no crime. Isso reverbera nas camadas mais populares", argumenta a advogada.
Ao explicar essa tese, Janaina 'desenha' uma pirâmide imaginária no ar, onde os "criminosos de massa", compõem a base. "A Lava Jato pegou o Cunha, pegou o Cabral [ex-governador do Rio] e está tentando pegar o Renan [Calheiros]", prossegue a jurista, referindo-se à camada intermediária da pirâmide. "Eu puni no topo", conclui.
Prejuízos
A entrevista chega ao fim e Janaina é convidada a posar para as fotos que ilustram esta matéria. "Deixa só eu conferir como está esse cabelo", responde, já se dirigindo a um espelho.
A advogada crê que sua participação na queda de Dilma Rousseff traz prejuízos à sua vida profissional até hoje. "Tive que recusar muitos casos e até aulas e palestras eu tenho evitado aceitar pela questão da segurança. O impeachment mais me prejudicou do que me ajudou nesse ponto."
Apesar de ter se oferecido para "trabalhar de graça" para João Doria na fiscalização dos banheiros do Ibirapuera, Janaina é cautelosa em relação à possibilidade de um dia vir a aceitar um cargo público. "Depende do cargo, depende do convite e da liberdade que eu teria", explica a jurista, acrescentando que já recusou convites para se filiar a partidos, para assinar um blog e até mesmo para comandar um programa de rádio.
Antes de se despedir, Janaina pede para ver como ficou a foto que tirou ao lado de uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, segundo ela enviada por uma 'fã' de Belém (PA). Pede para tirar mais uma e explica: "Dei uma soltada no cabelo, né... Porque, se não, acho que as pessoas não vão me reconhecer."