Kauka, sequestrada com apenas oito anos, reencontra sua mãe em Barleo
Reprodução/The Guardian
Kauka, sequestrada com apenas oito anos, reencontra sua mãe em Barleo

Há 39 anos, Kauka daria sua última caminhada pela estrada de terra batida que a levava até sua casa no  Timor-Leste . Ainda criança, com apenas oito anos, ela foi sequestrada por um soldado indonésio quando ia para a escola. Depois do rapto, seus pais foram obrigados a consentir a “adoção”.

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Vinda de uma família de cafeicultores, Kauka foi sequestrada em 1978, início da ocupação militar que durou 24 anos na Indonésia, em uma antiga colônia portuguesa de Timor-Leste. A mulher recorda de ter mordido o ombro do soldado, para que ele lhe soltasse. Sem sucesso com a tentatifa de fuga, ela foi levada para uma tenda militar e, em seguida, encaminhada para a ilha indonésia de Sulawesi, onde viveu até então.

Em novembro de 2017, aos 47 anos, a filha roubada voltou para sua mãe, e aldeia. Sua história com a família “adotiva” foi marcada por abusos e agressões. Ela relata ao The Guardian ter sido chicoteada, forçada a cozinhar e a trabalhar, além de ser queimada com cigarros pela esposa do soldado.

Após se converter do islamismo ao catolicismo, Kauka fugiu para um tipo de escola religiosa e passou a morar com a irmã do soldado. No leito de morte, a tia adotiva a pediu para que ela se casasse com seu marido. Atendendo ao pedido, se tornou a segunda esposa do cunhado de seu sequestrador e madrasta dos dois filhos do casal.

A vida de Kauka ainda estaria assim, se não fosse uma instituição de caridade, que se dedica a encontrar crianças timorenses sequestradas e levá-las de volta para os familiares. De acordo com um relatório de 2005 da comissão da verdade de Timor-Leste, existem pelo menos quatro mil casos semelhantes.  Para o diretor da Justiça e Direitos da Ásia (Ajar), Galuh Wandita, "onde há soldados, há crianças roubadas".

O reencontro

No mês passado, Kauka deu início à viagem de volta a sua aldeia, Berleo, com uma pequena comitiva do Ajar. Eles saíram da capital Dili, porém tiveram pequenos contratempos no caminho. O caminhão em que seguiam viagem atolou, interrompendo o trajeto. Pessoas locais ajudaram o grupo, enquanto a mulher permanecia calada, por ter esquecido a língua local, Tetum.

Quando se aproximou de sua cidade natal, a terceira das sete aldeias nas montanhas nebulosas de Aileu, uma multidão de moradores se aproximou. Uma jovem foi em direção a Kauka, curiosa por não estar habituada a ver novos rostos no local. Quando mais pessoas vieram para perto, alguns reconheceram-na, afirmaram terem sido seus colegas de classe na segunda série.

Kauka afirma não ter se lembrado de muitas coisas. Há alguns dias, ela ainda não havia se convencido de que um homem que se apresentou como seu irmão mais novo fosse realmente seu parente. O rapaz, que a reconheceu no aeroporto junto com o Ajar, desviou dos policiais e foi abraçá-la.  Ele se lembrou de seu apelido de infância e tinha os mesmos traços que ela. Entretanto, Kauka se recusou a olhar para ele.

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Em Berleo, a mulher foi levada para a casa onde morou quando era menor. Uma jovem, que estava envolta em um véu de linho desbotado, a recepcionou com um abraço, porém Kauka foi em direção a uma mulher mais velha e segurou sua mão. “Esta é minha mãe”, disse ela, reconhecendo a cicatriz que sua mãe tinha.

Depois de abraçar a matriarca, ela começou a relembrar e a conhecer os membros de sua família. Naquela noite de novembro, outros reencontros como esse ocorreram para mais 15 pessoas.  Suas famílias atualmente estão espalhadas por Java e Sulawesi, grandes ilhas indonésias, e geralmente trabalham como fazendeiros ou donas de casa.

Kauka conta que nunca imaginou que um dia fosse voltar para o lar. A adaptação da jovem ao ambiente e a sua família foi notada de um dia para o outro. "Foi algo muito confuso, e até engraçado. Quando você cresce e fica longe de sua família, provavelmente não vai lembrar de muitas coisas sobre eles ou sobre sua mãe. Mas eu consegui, porque simplesmente tinha que recordar”.

Esse não é um caso isolado

Sob a ditadura militar de Suharto, a Indonésia ocupou o Timor-Leste de 1975 a 1999. Foi um período brutal, marcado pela tortura, estupro, fome, assassinatos e milhares de sequestros de menores, majoritariamente do sexo masculino, para que se tornassem “crianças-soldados”. O Ajar, que trabalha na responsabilização por crimes de massa em todo o sudeste da Ásia, conseguiu resgatar 57 crianças. No momento, esse é o único programa na Indonésia que auxilia no encontro dos raptados e suas famílias.

Nos últimos meses de 2017, a viagem começou em Díli, onde os adultos que retornaram puderam se encontrar com funcionários timorenses e suas comissões de direitos humanos e verdade, que os receberam e os trouxeram a possibilidade de se tornarem cidadãos timorenses novamente.

Porém, é necessário mencionar a dificuldade de tal ação. A maioria das crianças roubadas é muito pobre para pagar passagens de avião; além disso, grande parte se esquece da língua nativa, o Tetum. Vale lembrar que o Timor-Leste ainda é um país pequeno e novo, com menos de 1,3 milhões de habitantes, e de infraestrutura precária.

Nessa operação, os familiares das crianças roubadas foram convidados a enviar um representante para encontrá-los, assim que aterrissaram. Um homem chamado Maritu Fonseka, agora conselheiro em Sulawesi, pode reencontrar sua avó depois de muito tempo longe.  Marsal Cimenes também viu sua família.

Muitos não se lembravam das feições uns dos outros, o que dificultou o momento de identificação. Marsa, por exemplo, afirma ter ficado chateado, pensando que ninguém viria o encontrar, sem saber que a mulher sentada ao seu lado era sua tia. Dois homens, que se encontraram dias antes, foram surpreendidos ao descobrirem que não eram somente novos amigos, mas sim primos. Eles seguiram juntos para uma aldeia perto da cidade de Maubisse.

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Em outra aldeia perto de Maubisse, Miguel Amaral, um dos mais antigos timorenses de regresso, também teve contato com seus parentes antes de identificá-los.  A criança que havia sido sequestrada há 40 anos foi renomeada por soldados indonésios. O nome Untung, que significa " sorte ", foi escolhido após ter sido baleado três vezes e ter sobrevivido.  Ele levou uma fotografia desbotada do soldado que o raptou, e com quem viveu ao longo desse tempo. "Eu nunca me senti sortudo, mas agora acho que posso me considerar um pouco”, concluiu ele.

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