O presidente da comissão retirou de pauta requerimentos para quebra de sigilos de generais
Edilson Rodrigues/Agência Senado
O presidente da comissão retirou de pauta requerimentos para quebra de sigilos de generais


No final de agosto, o Ministério da Defesa (comandado por José Múcio) e o comando do Exército (representado pelo general Tomás Ribeiro Paiva) iniciaram uma manobra política para minimizar o desgaste da imagem das Forças Armadas, reunindo-se com diversos membros da CPMI que investiga os atos golpistas de 8 de janeiro. 

Após reuniões com membros da cúpula do colegiado, ficou decidido que a CPMI tratará como “lobos solitários” os militares envolvidos com a depredação de Brasília. Além disso, pedidos para convocação e quebra de sigilo de militares de alta patente foram retirados da pauta da comissão após os encontros com o presidente da CPMI, Arthur Maia (União-BA) ;  a relatora, senadora Eliziane Gama (PSD-MA); e o senador líder do governo,  Randolfe Rodrigues (Rede-AP). 




A atitude dos envolvidos desperta críticas no meio político, em meio ao temor de que essa tentativa de blindagem dos militares leve, mais uma vez, à impunidade dos responsáveis por orquestrar um ataque à democracia, em meio ao clamor social que exige uma investigação e responsabilização dos culpados.

"Um conhecido recurso do terrorismo de estado"

Rodrigo Lentz é advogado, professor de Ciência Politica da Universidade de Brasília (UnB), pesquisador do Instituto Tricontinental e conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). 

Rodrigo Lentz, advogado, professor de Ciência Politica da Universidade de Brasília (UnB), pesquisador do Instituto Tricontinental e conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC)
Reprodução
Rodrigo Lentz, advogado, professor de Ciência Politica da Universidade de Brasília (UnB), pesquisador do Instituto Tricontinental e conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC)


Ele vê o bolsonarismo como “um subproduto da cultura militar das forças armadas” que ameaçou a coesão profissional levando a disputa partidária para dentro dos quartéis “em troca de prestígio, poder e dinheiro”, arrastando a instituição “para a maior crise de imagem desde a derrubada da ditadura em 1964”.

Questionado sobre a retórica do comando do Exército e do Ministério da Defesa para “limpar” a imagem institucional dos militares, Lentz defende que o discurso que aponta apenas “desvios individuais” consiste em “um conhecido recurso do terrorismo de estado”.

“No caso do Exército, para concluir se esse discurso ‘para em pé’, basta perguntar: quantos generais e coronéis envolvidos na tentativa de golpe de estado foram indiciados por Inquéritos Policiais Militares? Se não cometeram crimes militares, é porque seguiam ordens da corporação militar, jamais agindo por conta própria. (...) Portanto, há uma clara ação do comando, com respaldo do governo, em poupar generais e coronéis”, disse Rodrigo. 

Ao adotar tal retórica, o professor e pesquisador aponta que o comandante age politicamente para “recuperar o verniz democrático produzido a partir de 1988”. A preocupação da corporação, na visão de Rodrigo, é com a imagem social, a perda da coesão interna e, sobretudo, a possibilidade de um general de 4 estrelas perca o passaporte da impunidade garantido desde o golpe de 1964”.

"Instituições mergulhadas no passado autoritário brasileiro"

Assim sendo, ele aponta que o problema do discurso de “preservar a instituição” é que a experiência histórica já mostrou que a impunidade corrói e fragiliza as instituições democráticas. “Não à toa, o Exército sangra em praça pública a cada dia. É melhor esclarecer, corrigir e previnir, com reformas democráticas. Essa seria uma efetiva preservação da instituição”, disse o professor.

Diante da pergunta sobre qual é, afinal, “a cara” do militarismo brasileiro no que diz respeito ao respeito (ou falta dele) pelos valores democráticos, Rodrigo Lentz respondeu que as Forças Armadas “ainda são instituições mergulhadas no passado autoritário brasileiro, seja da ditadura de 1964, seja do legado oligárquico, escravocrata e colonialista de seu papel histórico”. 

Além disso, Rodrigo destaca que até hoje os militares negam que as práticas de tortura, assassinatos, desaparecimentos e prisões ilegais sistematicamente promovidas pela instituição. 

“Negam seu protagonismo no golpe de estado de ontem, assim como buscam negar na tentativa de hoje. Sem reformas democráticas, as forças armadas seguirão como uma ameaça à democracia e os militares uma força que desestabiliza o regime democrático.” 

Para Rodrigo, a queda de confiança da sociedade nas Forças Armadas na sociedade como um fenômeno multifatorial que envolve problemas, como despreparo profissional, baixo nível intelectual, desmoralização ética, divulgação de privilégios, desvios de finalidade, crise de utilidade e decepção golpista.

“O fato é que o mito de superioridade moral dos militares foi gravemente comprometido. Penso que não o suficiente para vir a óbito, por isso segue como uma ameaça à democracia.”

"Ficará na história essa imagem de inação"

Arthur Maia e Eliziane Gama, presidente e relatora da CPMI do 8 de janeiro
Divulgação
Arthur Maia e Eliziane Gama, presidente e relatora da CPMI do 8 de janeiro



Apesar da postura da cúpula da CPMI, o colegiado não é uma massa homogênea, e está repleto de disputas políticas pelo controle da retórica acerca do que houve naquele 8 de janeiro histórico. Contudo, ao poupar os militares conhecidos como “quatro estrelas”, a sensação de que tudo “deu em pizza” aparece.

“As Forças Armadas possuem uma estrutura pesada de lobby no Legislativo - mais de 700% superior à Assessoria Legislativa do ministério da Defesa, para se ter uma ideia. Há generais e coronéis parlamentares. E há ‘civis de coturno’, como pode ser identificado o presidente da CPMI. A comissão tem avançado na investigação de militares sem ainda ultrapassar a última barreira: os generais de 4 estrelas. Sem chegar em quem verdadeiramente exercia poder de comando sobre os demais militares envolvidos na tentativa de golpe, ficará na história essa imagem de inação”, disse o especialista.

A entrevista foi concluída com a pergunta “de um milhão de dólares” a respeito dos resultados dos trabalhos da CPMI do 8 de janeiro: “Afinal, você acredita que o fato do golpe frustrado de 2023 ter falhado levará à elucidação adequada dos crimes e culpados por tentar usurpar o poder e abolir violentamente o Estado Democrático do Direito?”.

Rodrigo, que é também conselheiro da Comissão de Anistia, afirmou que o atual comandante do Exército, Tomás Paiva, poderá entrar para a história “como o comandante que promoveu uma ‘divisão de águas’ entre o passado autoritário e o futuro democrático”, se isso for de seu interesse. 

“Ele pode editar um comando para que a própria força revise sua atuação durante a ditadura de 1964 e produza, com ajuda da academia civil, uma nova visão histórica, que se sintonize às recomendações da Comissão Nacional da Verdade, resultando em reformas organizacionais que democratizem os valores e a moral militar no Brasil”, disse Rodrigo. 

O professor aponta que essa é uma tarefa da qual “poucos comandantes na história seriam capazes, pois exige uma coragem excepcional, uma habilidade disciplinar extraordinária, uma astúcia estratégica rara”.

Contudo, o atual momento se distinguiria de toda a história desde o ano de 1985, no que diz respeito ao “amplo respaldo” que essa postura teria dos três Poderes da República, da imprensa, do Governo e dos mais amplos setores sociais.

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