Conversamos com especialistas para entender o que leva um policial a entrar em estado de surto psicótico
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Conversamos com especialistas para entender o que leva um policial a entrar em estado de surto psicótico

Nos 110 primeiros dias do ano, a reportagem do Portal iG contabilizou ao menos 10 ações de policiais com surtos psicóticos . Disparos de armas de fogo, ameaças, tentativas de suicídio e até homicídios aconteceram de norte a sul do país, com as vítimas variando entre esposa, vizinhos, a sociedade civil e até  mesmo outros policiais.

Mas há ligação entre estes fatos? O que explica o Brasil apresentar um caso de surto psicótico policial a cada 11 dias? Dos dez casos registrados, apenas três não tiveram o envolvimento de armas de fogo, seja com disparos ou apenas com o porte. Já entre os outros sete, em dois deles o episódio terminou em morte.

O caso de maior repercussão ocorreu em Salvador (BA) no último dia 28 de março. Wesley Soares Góes, soldado da Polícia Militar, teve um surto psicótico e atirou contra oficiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) . Ele gritava palavras de ordem desconexas, foi abatido e acabou morrendo ao chegar no hospital.

Um dia após o ocorrido na Bahia, uma investigadora da policial civil passou a gritar e rolar no chão na zona rural de Barra do Bugres, no Mato Grosso. Ao avistar a chegada dos militares, a mulher atirou contra os oficiais e fugiu na direção de um canavial gritando frases sem sentido. Foi encontrada morta em seguida - sob suspeita de suicídio.

Nos outros casos, em mais da metade foi constatada a presença de uma arma de fogo. Em Petrolina (PE), um policial foi detido após sair armado de casa aos gritos e com falas desconexas. Foi encontrado em uma estação ferroviária e sua arma, uma pistola calibre .40 foi apreendida. Já em Betim, na Grande Belo Horizonte (MG), um rapaz foi ferido dentro de casa por um vizinho, este policial militar, que gritava palavras desconexas e realizou quatro disparos na direção do apartamento ao lado.

'Bomba-relógio'

Dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, através do Anuário Brasileiro de 2020, revelam que o suicídio dos profissionais do setor é um grande problema. Em 2019, foram 93 agentes - entre policiais civis e militares - que cometeram suicídio. Em comparação, o total de mortes em serviço foi de 62 no mesmo período. Tais números deixam claro que, no Brasil, é mais um policial se suicidar do que morrer durante o expediente.

O tema chama atenção até mesmo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que possui um manual informativo com instruções de como se comportar em momentos de crise. Chamado de "Guia para prevenção do suicídio", o documento alerta para o fato de que agentes de segurança "realizam o primeiro contato com pessoas que possuem distúrbios psicológicos, emocionais, dependentes químicos ou suicídas. Contudo, eles não são treinados para identificar os sinais e sintomas de possíveis doenças mentais ou sabem tomar as medidas mais apropriadas quando seu comportamento passa a ser motivo de preocupação".

O coronel Eduardo Drigo, oficial da reserva da Polícia Militar , explica que "o nível de estresse do policial, desde o soldado até os postos de comando mais elevados, é, em média, maior do que o do restante da população". Ele afirma ainda que tais descontroles ocorrem devido uma série de fatores que, combinados, eclodem no surto de alguns profissionais: o dever de estar sempre preparado para um embate e expor a sua vida, baixa remuneração, não reconhecimeno social, baixa confiabilidade por parte da imprensa, parte de despreparo e excesso de agressividade.

De acordo com as conclusões do Anuário, esta dura realidade deve-se também a uma cultura policial que reprime as emoções humanas: "manifestações relacionadas à fraquezas, dores e medos, inerentes à experiencia humana, encontram pouco ou nenhum espaço nas organizações policiais".

Bruno Paes Manso, especialista em segurança pública  e membro do grupo de pesquisa do Monitor da Violência, atribui parte deste 'descontrole' ao cenário de pandemia: "estamos nesse ambiente muito estressante causado pelo novo coronavírus e a polícia está na linha de frente. Isso tensiona o dia a dia dos agentes. Eles acabam sendo as figuras mais importantes por estar nas ruas, evitar festas e até por isso, uma grande quantidade de policiais morreu em decorrência do novo coronavírus".

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Dados do Monitor da Violência mostram ainda que o setor das forças de segurança pública foi um dos mais impactados pela doença. Em 2020, 465 policiais morreram no país de complicações do novo coronavírus . Para efeito de comparação, isso representa oito vezes mais do que os óbitos em serviço e o dobro em comparação às mortes dos agentes nas ruas.

Apoio aos agentes

Outro caso que gerou comoção nacional também ocorreu na Bahia, na cidade de Salvador. Um policial militar, que não teve sua identidade revelada, cortou os pulsos durante o expediente com uma faca. Colegas que o encontraram chamaram o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e encaminharam o socorrido a uma clínica psiquiátrica.

Sobre este tipo de auxílio, seja dos pares ou das instiuições, Drigo ressalta que a Polícia Militar, ao menos no estado de São Paulo, têm se esforçado para atender e dar apoio aos seus agente de segurança através de ações preventivas como o Nucleo de Apoio Psicológico (NAPS), exames anuais e auxilio de conduta àqueles que necessitam de ajuda: "condições inerentes ao próprio serviço talvez mereçam mais atenção externa e desenvolvimento de mecanismos que tornem a profissão mais salubre e atraente".


Já o relatório anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que as organizações policiais tendem a individualizar os problemas dos agentes de segurança, atribuindo ao próprio policial a responsabilidade por seu adoecimento ou violência auto infligida.

"O convívio permanente com a morte e a violência, as extenuantes jornadas de trabalho, a falta de sono, lazer e convívio com a família também são fatores de risco para os policiais. Estão diretamente relacionados com o trabalho policial e, portanto, podem levar os profissionais a quadros de adoecimento físico e mental", conclui o instituto.

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