Ao longo de 2020, a moradora de Porto Seguro (BA) Firmiana Martins de Jesus Santos, de 64 anos, passou oito meses em quarentena na tentativa de se proteger da Covid-19. Diabética e hipertensa, deixou de trabalhar como cozinheira em um hotel da cidade, mas não conseguiu ficar parada em casa: criou um pequeno negócio de produção e venda de massas artesanais.
Em dezembro, quando a alta temporada de verão se iniciava no município, que tem o turismo como principal atividade econômica, Firmiana decidiu voltar ao trabalho.
Segundo uma de suas filhas, entre seus objetivos estava o de juntar dinheiro para comprar um carro que lhe permitisse entregar seus produtos nas casas dos clientes. “Ela estava animada em trabalhar para ela mesma, porque estava dentro de casa, produzindo, e o dinheiro estava entrando. Porém estava triste porque não conseguia fazer as entregas, não queria cobrar do cliente, mas também não tinha como pagar o delivery”, contou à Agência Pública .
Após retomar o posto de cozinheira do hotel no centro da cidade, no início de janeiro, Firmiana começou a apresentar sintomas de Covid-19 e testou positivo para o coronavírus. Dias depois, passou a se sentir mal e foi levada até uma das UPAs do município, onde ficou internada porque parte do pulmão foi comprometido. Em seguida, veio outra complicação em decorrência da doença, uma isquemia intestinal – basicamente, a redução do fluxo sanguíneo no intestino delgado por conta de coágulos ou trombos, que provocou necrose e, por consequência, afetou funcionamento de seu órgão em cerca 90%.
Agora, Firmiana está sedada e entubada em um hospital público na sede de Porto Seguro, e seu quadro é considerado praticamente irreversível pelos médicos. Embora saibam que seu estado de saúde é delicado, os familiares tentam transferi-la para São Paulo, na remota esperança de que ela faça um transplante de intestino. “Enquanto ela respira, a gente tenta. Não conseguimos ficar de braços cruzados”, afirma a filha. Ela suspeita que a mãe possa ter se infectado no trabalho, pois recebeu notícias de que outros funcionários do hotel também tiveram sintomas.
“Ontem, vivendo essa angústia diária, passei por uma avenida da cidade e vi que as pessoas vão para o bar muito tranquilamente, despreocupadas, destemidas, ninguém com mascara”, desabafa. “A gente sabe que as pessoas precisam trabalhar, que precisam ver girar o dinheiro, mas acredito que com ordem a gente consegue controlar. Não dá pra achar que tudo acabou, simplesmente não usar máscara e fazer as coisas de qualquer maneira.”
Jatinhos e aglomeração
Firmiana vive na mesma Porto Seguro cujas ruas, praias e restaurantes foram palco de aglomerações e cenas de turistas circulando sem máscaras entre o fim de 2020 e os primeiros dias de 2021.
Um mês após a época de festas , nossa reportagem fez um levantamento que indica que a cidade do Sul da Bahia viveu, nas primeiras semanas de 2021, o segundo pior período da pandemia em relação a novos casos de Covid-19. Dados do Ministério da Saúde indicam que a segunda e terceira semanas de janeiro estão entre as quatro piores em média de novos casos, perdendo apenas para a última quinzena de julho de 2020, que teve as maiores médias desde que o coronavírus chegou a Porto Seguro, em março do ano passado.
Os três mais badalados e famosos distritos litorâneos do município, que protagonizaram vídeos de festas publicados nas redes sociais, também viram a pandemia recrudescer. A média de novos casos da doença em Arraial D’Ajuda e Trancoso na segunda semana de 2021 é a maior desde o início da epidemia, com cerca de cinco e quatro novos casos diários, respectivamente. Já Caraíva atingiu esse patamar na terceira semana de janeiro, com uma média de aproximadamente dois casos por dia.
“A situação das aglomerações tem relação direta com o aumento de casos”, afirma o infectologista Claudilson Bastos, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e secretário da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Ele destaca que, principalmente em ambientes de festa, as pessoas retiram as máscaras e não se lembram de higienizar as mãos com álcool gel, o que acaba facilitando a transmissão.
A médica Maria Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba), diz que “a possibilidade de circulação do vírus nesses espaços é imensa”, pois “o ambiente ideal para ele se transmitir é quando a gente se aglomera, quando ficamos próximos uns dos outros”. “Era esperado que, em duas semanas, haveria um aumento dos casos de Covid [em Porto Seguro], e isso de fato aconteceu”, destaca.
A alta dos casos de Covid-19 é ainda mais alarmante diante da elevada taxa de ocupação das UTIs na cidade. A prefeitura informou que são 28 leitos de terapia intensiva destinados a pacientes com a doença, mas apenas oito deles ficam de fato em Porto Seguro, em um hospital no centro do município; os outros vinte estão a cerca de 64 quilômetros, na vizinha Eunápolis. Até ontem (31), 82% desses leitos estavam ocupados. Segundo dados disponibilizados pela prefeitura, desde 1º de janeiro, em apenas três dias a taxa de ocupação ficou abaixo dos 80%, patamar considerado “crítico” pela Fiocruz.
Ainda conforme o MS, o número de internações em UTI de moradores de Porto Seguro por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) decorrente de Covid-19 chegou a seis na segunda semana de janeiro. Somente a segunda semana de setembro de 2020 havia apresentado o mesmo número, que até hoje é o maior registrado para o município pela base do SUS.
Justiça proibiu, mas teve festa mesmo assim
Tanto na imprensa quanto em perfis criados no Instagram para denunciar festas de fim de ano, pipocaram imagens de grandes reuniões de pessoas em Arraial D’Ajuda, Trancoso e Caraíva, alguns dos destinos turísticos mais procurados do país para o réveillon. Nos últimos dias do ano, o céu de Trancoso chegou a ficar congestionado pelos jatinhos que transportavam visitantes de classe alta até a praia paradisíaca. Foi lá também que a polícia desmobilizou um evento para mais de 500 pessoas na casa da cantora Elba Ramalho, realizada por um empresário que havia alugado o imóvel para passar o fim de ano.
No apagar das luzes de 2020, em 29 de dezembro, uma desembargadora da Justiça da Bahia proibiu de vez as festas em estabelecimentos de Porto Seguro até 4 de janeiro. Um dia antes, um juiz da Comarca de Porto Seguro havia acatado o pedido judicial feito por duas pousadas, um restaurante e uma produtora de eventos da cidade e liberado os eventos com até 200 pessoas.
No início de dezembro, o governador da Bahia, Rui Costa (PT) havia publicado decreto que desautorizava qualquer celebração, pública ou privada, em todo o estado até o fim de janeiro. No entanto, Jânio Natal (PL), prefeito eleito em novembro pela população de Porto Seguro, dava declarações no sentido contrário. “A cerimônia de posse nossa será possivelmente a zero hora e um minuto [do dia 1º de janeiro]. Vou baixar um decreto e a partir de uma hora da manhã e todas as casas de eventos de Porto Seguro estarão liberadas para fazer o réveillon”, disse em vídeo ainda naquele mês.
Na prática, o posicionamento do prefeito foi o que sobressaiu. Só entre 28 de dezembro e 3 de janeiro, a Polícia Militar baiana anunciou ter desmobilizado 70 festas irregulares apenas em Porto Seguro, sendo que a maioria ocorreu em Trancoso e Arraial D’Ajuda, segundo a própria PM.
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O problema é que, com o município lotado, a fiscalização às celebrações privadas não garantiu o fim das aglomerações. Em Caraíva, por exemplo, os turistas ocuparam as ruas e fizeram suas próprias festas a céu aberto, animadas pelo som de vários veículos e quase sempre sem uso de máscaras. “Quando proibiram a realização de eventos e permitiram a entrada de uma quantidade de pessoas absurda aqui dentro, o mínimo que poderiam ter feito é promover segurança sanitária: colocar barreira, fazer teste nas pessoas que querem vir, fazer um controle”, declara Agricio Ribeiro de Lemos, dono de uma pousada e de uma casa de forró que ficou fechada durante todo o período de fim de ano. “Mas não fizeram nada disso, simplesmente jogaram um decreto e disseram ‘é dessa forma que vai ser’.”
Moradores dos três distritos afirmaram que não houve fiscalização ostensiva por parte da Polícia Militar impedindo que essas aglomerações se formassem nas ruas. Procuradas, nem a Secretaria de Segurança Pública da Bahia tampouco a Prefeitura de Porto Seguro se posicionaram sobre o assunto.
Em Caraíva, “saúde precária” e falta de testes RT-PCR
A professora Julia Spindel, de 33 anos, moradora de Caraíva, integra o grupo de infectados pelo coronavírus durante o período de alta temporada. Em dezembro e janeiro, normalmente trabalha como garçonete em um restaurante no distrito. Ela contou que “tomava todos os cuidados, trabalhava de máscara e passava álcool em gel o tempo todo”. Ainda assim, considera a possibilidade de ter contraído o vírus no emprego, já que um de seus colegas apresentou sintomas da doença pouco antes dela. Depois de ter febre e sentir cansaço e falta de ar, foi a um hospital na região central de Porto Seguro, onde chegou a ficar internada em um leito clínico. “Agora estão brotando casos em todo o canto por aqui”, aponta Julia, que tem sentido a pandemia fechar o cerco no vilarejo. “É claro que tem a ver com a lotação, é muita gente de fora.”
Com população de aproximadamente mil habitantes que chega até 8 mil durante o final do ano, Caraíva tem menos moradores que Arraial D’Ajuda, com cerca 17 mil, e Trancoso, que tem por volta de 11 mil, segundo dados de 2010 do IBGE. O vilarejo, distante 61 quilômetros da sede de Porto Seguro, conta com uma Unidade Básica de Saúde (UBS), mas não com Unidade de Pronto Atendimento (UPA), e por isso não tem estrutura para prestar atendimento de urgência. Além disso, não dispõe de uma ambulância com estrutura paramédica para transportar pacientes que precisam de transferência ao hospital mais próximo, no centro da cidade. Além do serviço de saúde insuficiente, os moradores relataram que faltam testes RT-PCR – aqueles que identificam se a pessoa está com o vírus no momento – para a população local, o que pode provocar a subnotificação de casos.
Por conta dos problemas na infraestrutura sanitária e já prevendo o alto fluxo de turistas no fim de ano, a comunidade tentou implementar medidas de segurança. “A gente tentou criar uma estrutura que ficasse do outro lado do rio [para chegar à Caraíva, é preciso fazer a travessia] para que se testasse as pessoas na chegada”, conta Maria Beatriz Paiva, da Rede de Apoio à Saúde de Caraíva, organização de voluntários criada em meio à pandemia para auxiliar a comunidade em questões relacionadas à saúde. “Só que, como não podíamos esbarrar no direito de ir e vir das pessoas, se alguém testasse positivo lá, a gente não poderia mandar a pessoa embora”, explica. No fim das contas, os turistas puderam entrar livremente no vilarejo.
Martim Arantes, membro do Conselho Comunitário e Ambiental de Caraíva e dono de uma hospedagem no distrito, afirma que, entre o Natal e os primeiros dias de janeiro, o público que frequenta o local tem “faixa etária de 25 a 40 anos, com poder aquisitivo alto” e vem, sobretudo, do Sudeste. De acordo com ele, essas pessoas chegam atraídas pela ideia de “paraíso”, que é problemática, em sua avaliação. “A gente sempre vende essa ideia do paraíso. Aqui não é um paraíso, aqui é um lugar com ausência de poder público, que não tem saneamento básico, com educação e saúde precárias”, salienta. “Se é um paraíso onde se pode tudo e estamos vivendo uma pandemia, na hora em que a pessoa atravessa o rio, passa a não existir nada disso. Aqui não existe uma população que pode ficar doente, não existem problemas com o poder público, então ‘eu posso fazer o que quero’.”
Até o fechamento da reportagem, a Prefeitura de Porto Seguro não se posicionou sobre as queixas dos moradores de Caraíva.
Moradores de Arraial D’Ajuda e Trancoso relatam medo de sair de casa
Em Arraial D’Ajuda e Trancoso, a 7 e 35 quilômetros da sede de Porto Seguro, respectivamente, a situação foi a mesma, com grande movimento no final de ano. Para Yuri Atilio Oliveira, de 34 anos, a intensa circulação de pessoas em Arraial foi um dos fatores determinantes para que ele contraísse Covid-19 no início do mês enquanto trabalhava na pequena pizzaria da qual é proprietário. Isso porque, mesmo atendendo os clientes apenas por delivery, um de seus dois funcionários apresentou sintomas pouco antes do mesmo acontecer com ele.
No distrito há apenas uma UPA, à qual Yuri decidiu ir quando começou a sentir febre e dores na garganta. Lá não conseguiu realizar um teste, passou apenas por uma consulta na qual recebeu um “kit-Covid” com medicamentos como ivermectina, cuja eficácia contra a Covid-19 não tem confirmação científica. Para saber se de fato estava com o vírus, precisou recorrer a um laboratório particular, e, assim que testou positivo, se isolou, o que não foi novidade para ele, que já evitava ao máximo sair de casa por morar com os pais idosos. “Eu estava bastante receoso, com medo de pegar. Foi o primeiro réveillon em que não saí, passei em casa dormindo, nem fui para a rua”, narra.
Moradora de Arraial D’Ajuda há mais de trinta anos, Indi Carolina Oliveira, dona de uma pousada no local, diz que, durante a temporada de festas, precisou solicitar aos hóspedes que usassem máscaras. Em um desses episódios, no início de janeiro, os clientes, uma família, decidiram deixar o estabelecimento após o pedido. “Falei para ela colocar a máscara, ela não gostou e disse que ia chamar a polícia”, conta. “Devolvi o dinheiro e eles foram embora. Não precisaria ter que falar isso, todo mundo deveria já saber.”
Em Trancoso, moradores também relataram terem evitado sair de casa ao longo dos dias mais lotados com medo das aglomerações nas ruas. “Eu particularmente tinha medo até de ir no mercado”, diz a assistente social Aline Massoni. ”A gente se trancou para os turistas virem. A população local, quando possível, ficou trancada, e quando não, ficou em risco.”
Para Maria Glória Teixeira, as consequências mais graves das aglomerações vistas no fim de 2020 e começo de 2021 em Porto Seguro recaem sobre quem fica, já que “a população local mais vulnerável sempre é mais atingida, porque adoece e não tem assistência médica adequada”. Ela frisa, entretanto, que as implicações do desrespeito ao distanciamento social e ao uso de máscaras podem extravasar as fronteiras do município. “Os casos não só aumentaram em Porto Seguro e nos distritos, como muitas pessoas que estiveram ali se contaminaram e levaram o vírus para outras cidades e mesmo para o exterior”, pontua.
A epidemiologista aponta que teria sido possível aliar a prática do turismo às medidas de prevenção à Covid-19 se uma condição básica tivesse sido respeitada. “Primeiro teria que limitar o número de pessoas entrando na cidade – o que seria difícil –, depois promover distanciamento nas praias e proibir festas”, analisa. “Mas com a cidade apinhada de turistas, o resto seria tapar o sol com a peneira.”
Metodologia da análise de dados
Para os cálculos de média diária de novos casos por semana epidemiológica em todo o município de Porto Seguro, utilizamos os dados do Painel Coronavírus do Ministério da Saúde. Para o mesmo cálculo nos distritos de Trancoso, Arraial d’Ajuda e Caraíva, levantamos os dados a partir dos boletins epidemiológicos diários divulgados pela Prefeitura de Porto Seguro.
Os dados de internação em UTI de pacientes com SRAG decorrente de Covid-19 foram filtrados do banco de dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave de 2020 e 2021, também do Ministério da Saúde, a partir do município de residência.