Pesquisa foi realizada em parceria entre o Anis Instituto de Bioética e a UnB (Universidade de Brasília)
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Pesquisa foi realizada em parceria entre o Anis Instituto de Bioética e a UnB (Universidade de Brasília)

Até o fim da vida reprodutiva, 20% das mulheres terão feito ao menos um aborto ilegal no Brasil. Isso significa que uma em cada cinco gestantes aos 40 anos terá abortado pelo menos uma vez. É o que revela a segunda edição da PNA (Pesquisa Nacional de Aborto), feita em parceria entre o Anis Instituto de Bioética e a UnB (Universidade de Brasília).

Segundo a pesquisa , em 2015, 417 mil mulheres nas áreas urbanas do Brasil interromperam a gravidez. O número sobe para 503 mil se for incluída a zona rural. O tema volta ao debate depois que uma nova ação chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal) pedindo a descriminalização do aborto  até a 12ª semana de gestação, em qualquer situação.

O levantamento mostra que, geralmente, a mulher que aborta tem entre 18 e 39 anos, é alfabetizada, de área urbana e de todas as classes socioeconômicas, sendo que a maior parte (48%) completou o ensino fundamental e 26% tinham ensino superior. Do total, 67% já tinham outros filhos. A religião professada não é impeditivo para o ato, pois 56% dos casos registrados foram praticados por católicas e 25% por protestantes ou evangélicas.

“Há tanto aborto no Brasil que é possível dizer que em praticamente todas as famílias do País alguém já fez um aborto – uma avó, tia, prima, mãe, irmã ou filha, ainda que em segredo. Todos conhecemos uma mulher que já fez aborto”, conclui o levantamento, que trata o tema como saúde pública.

Em 2009, o Ministério da Saúde lançou a publicação "20 anos de Pesquisa Sobre Aborto do Brasil", que também traça um perfil de quem interrompe a gravidez no País. Segundo o material, são “predominantemente mulheres entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, católicas, com pelo menos um filho e usuárias de métodos contraceptivos, as quais abortam com misoprostol [remédio abortivo popularmente conhecido como Cytotec]”.

Moradora de Brasília, a professora Maria (nome fictício), de 38 anos, relata que já abortou duas vezes, por razões diferentes, mesmo após já ter dois filhos. Com doutorado na área de ciências sociais, em 2003 se submeteu ao procedimento ilegal por estar em processo de divórcio.

“Ser criminalizado é péssimo, foi uma situação muito difícil. Tentei com Cytotec, mas não funcionou. Somente na terceira tentativa, com a inserção de um líquido em uma clínica, que doeu um absurdo, imediatamente começou a hemorragia. Conclui o procedimento com a curetagem na rede pública e consegui uma receita de benzetacil [antibiótico penicilina] para tomar todo dia por uma semana”, lembra.

Em 2008, quando estava concluindo um mestrado, teve outra gravidez . O pai da criança a acusou de estar tentando praticar o “golpe da barriga”. Ela, então, pagou por um aborto em uma clínica. “O pai forçou a barra, eu queria ter, já estava empregada e foi logo após perder uma amiga, que morreu por causa de um aborto mal sucedido. Mas aceitei porque precisa me concentrar para terminar o mestrado”, disse.

A artista plástica Ana (nome também fictício), de Brasília, conta que não hesitou quando teve uma gravidez indesejada e decidiu fazer um aborto. Na época, tinha 28 anos e já possuía uma filha, quando descobriu uma traição do companheiro e decidiu terminar a relação. “Eu sabia muito bem a dedicação que a criação de um filho exige. Morava com meus pais e não tinha condições de me sustentar. Fazia faculdade e trabalhava. Não sabia por onde começar, ou o que fazer. Contei para uma amiga, ela me acolheu e me ajudou muito. Contei para o parceiro e para a família e eles também me ajudaram. Com a indicação de uma médica, fui a uma clínica em Goiânia e o meu parceiro me acompanhou”.

Segundo ela, o procedimento foi rápido. Mesmo assim, sentiu medo da morte. “A anestesia não fez efeito direito e eu senti aquele 'aspirador' sugar tudo. O médico, assim como apareceu, sumiu, parecia até alucinação. A enfermeira, em seguida, me empurrou antibiótico, anti-inflamatório e analgésico e me fez levantar da maca. Saí em seguida caminhando pela rua com meu companheiro, sem entender o que tinha acontecido. Nos dias que se seguiram fiquei com medo de acontecer alguma coisa, achei que não estivesse bem, nem conseguia dormir. Alguns meses depois, vi no jornal a clínica sendo descoberta pela polícia”, lembra.

Criminalização

O levantamento do Ministério da Saúde mostra que a criminalização do aborto atinge especialmente mulheres jovens, desempregadas ou em situação informal, negras, com baixa escolaridade, solteiras e moradoras de áreas periféricas. Ana e Maria, com perfil oposto ao descrito pelo estudo, conseguiram concluir o procedimento sem maiores problemas.

No ano passado, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto também lançou um dossiê sobre o assunto, referente ao período entre 2007 e 2015. O material relata 20 casos emblemáticos de criminalização da prática no período, além de trazer o contexto das leis.

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A presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida - Brasil sem Aborto, Lenise Garcia, defende a criminalização do aborto, mas concorda que isso não tem sido o suficiente para coibir a prática. “Dizer que a escolha é entre fazer o aborto legal ou fazer o aborto clandestino não é verdade. A escolha é sobre fazer ou não fazer o aborto. O direito sempre seria por não fazer o aborto, porque a criança também tem o seu direito. O aborto clandestino está tão presente por uma questão de impunidade. A grávida descobre onde está a clínica e a polícia não descobre? Então, o aborto clandestino acontece pela impunidade, pela corrupção que muitas vezes envolve a própria polícia”, argumentou a professora, ao participar do programa Diálogo Brasil, da TV Brasil .

Ela defende que toda mulher grávida merece ter o acolhimento necessário para que possa ter seus filhos e afirma que “a maior parte delas opta por isso quando tem essa possibilidade”.

Estupro

Um caso emblemático incluído no relatório é o da menina de 9 anos de Alagoinha (PE), que foi vítima de estupro em 2009. A igreja local interveio e um centro médico se recusou a fazer o procedimento legal, sendo necessária a ação de entidades e a transferência de unidade para resolver o caso. No final, o arcebispo excomungou todos os envolvidos, menos o padrasto que estuprou a menina.

“São casos para visibilizar, processos inclusive que poderiam passar por procedimentos legais, mas que, por força do conservadorismo, dos valores morais, do julgamento individual das pessoas responsáveis, acabou violando direitos”, explica a socióloga Joluzia Batista, integrante do Comitê Impulsor da Frente.

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De acordo com ela, dados de uma pesquisa de 2015 apontam que, no estado de São Paulo, 111 mulheres foram denunciadas por fazer aborto e estão respondendo a ação penal ou inquérito. No Rio de Janeiro, outro levantamento mostrou que, de 2007 a 2011, foram abertos 334 inquéritos sobre aborto no estado.


* Com informações da Agência Brasil

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